segunda-feira, 26 de setembro de 2005

A sigética em Heidegger e a poesia de Trakl

A sigética em Heidegger e a poesia de Trakl “Se és um homem, deixa tua fala lá fora.” Trakl “Nos seus esboços tardios em que trata de uma linguagem capaz de dizer a verdade do ser, o lugar central é ocupado pela sigética, que inclui, entre as “figuras” do dizer, o silêncio, e mesmo o silêncio sobre o silêncio. Aqui não existe mais qualquer possibilidade de tomar o termo “dizer” como sinônimo de “verbalizar”. Ele deve ser entendido a partir do sentido do verbo dicere, em latim, anunciar solenemente, que, por seu turno, remonta à raiz indo-européia deik-, mostrar apontar, indicar. A palavra, antes de ser uma “parábola”, é uma dica; a fala, antes de contar uma “fábula”, é um gesto que desoculta uma “gesta”. Em última análise, até o calar, verbal ou corpóreo passa a valer como um modo de dizer indicial, precisamente daquilo que está além do alcance de qualquer ato fonético ou comportamental.”[1] A referida citação afirma que “o calar, verbal ou corpóreo passa a valer como um modo de dizer indicial, precisamente daquilo que está além do alcance de qualquer ato fonético”, ao eliminarmos o dizer verbal e o dizer corpóreo como possibilidade de manifestação do ser se poderia afirmar que a sigética pertence unicamente ao ente que silencia ou ela está, antes, direcionada a outro ente? Em que lugar se encontra o silêncio? Se no silêncio algo é dito, então, haveria um manifestar de uma ausência do silêncio daquele que cala, implicando no poder-dizer e também no seu não-poder-dizer. Heidegger diz que a “consciência só fala no modo do silêncio”[2] e que as razões da voz da consciência faz com que esta se manifeste como “a falta de qualquer formulação verbal”[3] para a questão da linguagem e do ser. Podemos tomar esse problema de duas formas: uma sigética referida somente ao Dasein [o que seria, de certa forma, um estar “condenado” a um não-poder-dizer do ente para captar o seu próprio ser] e outra referida ao silêncio de um ente a ser captado por outro ente; vamos nos deter nesta última hipótese onde o próprio Heidegger adverte: “uma coisa é relatar algo sobre os entes, outra coisa totalmente diferente é captar o ser dos entes”[4], mas com isto não se pode afirmar que o silêncio de algum ente signifique para ele próprio “a falta de qualquer formulação verbal” em seus pensamentos. O silêncio, neste caso, é sempre para aquele que deseja captar o ser do ente que se encontra no modo sigético.
A linguagem, ainda que não seja expressada, não-verbalizada a outro ente não exclui daquele que silencia um pensar articulável em palavras dentro de sua consciência. Se deslocarmos essa questão veremos que silenciar pode ser indicar pensamentos não-verbalizados, contudo, pensados. Se na primeira forma da sigética, do ente consigo mesmo, existe o indizível como o ente saberia o que é este algo indizível se não pode chegar a verbalizá-lo nem para si próprio? Por outro lado, se isto se refere a outro ente então há algo como negar ao outro a linguagem de si próprio, com isto, negar ao outro uma aproximação possível de desvelamento do ser. Mas se não for possível dizer o indizível nem para si mesmo como se pode pretender dizê-lo ao outro?
A poesia parece ser um bom exemplo para este problema, embora pareça conter um paradoxo: de um lado é um dizer-sigético transformado em linguagem que, no entanto, também quer silenciar e, por isso, a forma poética; de outro, a poesia não pode dispensar a linguagem, a poesia não pode pretender ser silenciosa em termos de um negar-se à representação dos signos, já que dessa forma não existiria. O dizer metafórico tem algo de sigético, pois “oculta” o pensamento “originário” que a desencadeou, pois considerando que o uso de metáforas faz o poeta dizer sem dizer “claramente” como captar o ser ocultado por trás de metáforas? Loparic observa que “Heidegger descobriu que, para realizar o seu projeto de desconstrução radical da linguagem da metafísica, podia recorrer, como subsídio ao seu pensamento, à linguagem de alguns poetas. Ele não se aventurou a transformar a filosofia em poesia, mas se deixou guiar por modos de dizer não-objetificantes poéticos, na tentativa de recuperar o poder indicativo da linguagem e de conseguir transmitir e interpretar a mensagem silenciosa da cisão, exigência central do seu desconstrucionismo.” Hölderlin foi tomado como exemplo disso. Poderíamos pensar de que forma essas questões se ligam: a desconstrução da linguagem da metafísica, o sentido do ser em seu desvelamento, a poesia e, finalmente, o silêncio, e até o silêncio sobre o silêncio.
Se pensarmos na poesia e no quanto seu poder de síntese é ao mesmo tempo “claro” [para o autor] e obscuro [para o leitor] veríamos nesse silêncio “metafórico” uma linguagem poética que diz e que não diz: o escritor fala para si próprio construindo um “mundo” pleno de sentidos para ele, já o leitor tenta desvelar tais sentidos, a metáfora converte-se em uma provocação pois o seu dizer não indica um único dizer, mas múltiplos dizeres. O poeta, torna-se o “protetor” do seu ser no silêncio de sua própria poesia metafórica ao mesmo tempo em que manifesta seu ser através dos múltiplos dizeres passíveis de serem pensados pelo leitor, pois este não deixa de ver possibilidades infinitas de penetrar nesse “silêncio metafórico”. Um dizer que é um não querer dizer óbvio e isento de obscuridades, é um dizer que insinua: na poesia o poeta se encontra no lugar do silêncio buscado, no poeta o silêncio é manifestado em forma de uma síntese sua sobre o mundo e a existência, o leitor é um multiplicador desses significados e sentidos. Na sigética do poeta não há o silêncio do pensamento, há o silêncio sempre para o outro, para o mundo, para o sair de si mesmo para “fora”, mas nunca para ele onde silenciar não significa “pensar” no modo do silêncio.[5]
A sigética que pode soar como um mistério, um segredo, como uma “auto-interjeição” de uma voz que “manda” cessar o discurso mas, que todavia, não toca a “voz” que se move no pensar, soaria como uma espécie de deus da metafísica, mas, aqui, na figura de Trakl soa puramente como poesia recorrente em variações metafóricas. Essa ausência de “voz” considerada como possibilidade de silêncio surge na poesia de Trakl como uma linguagem aliada à uma máscara: “Os consumidos pela terra, quando, com línguas de prata, silenciavam o inferno. Apagaram-se então as candeias no frio aposento e em silêncio as pessoas, no seu sofrimento, olhavam-se com as suas máscaras púrpuras.” Silenciar o inferno, metáfora para o dizer da linguagem que consome os homens, pois é nas máscaras eventuais do silêncio e não nas máscaras da linguagem que alia-se unicamente ao pensar daquele que cala algo de originário em seu ser. Vamos relembrar Trakl e sua enorme recorrência a metáforas, o silêncio aparece como uma forma poética evocando o indizível que a linguagem não consegue ultrapassar. Na sua obra Outono transfigurado encontramos o termo em várias passagens, quase como uma apologia a tudo que cala:
“Que o meu silêncio seja a tua canção (...) Com o coração cheio de silêncio vi. Uma praia morta num mar de silêncio.” In: Outono transfigurado: Cântico da noite. “No silêncio abrem-se os olhos azuis de papoula de um anjo.” In: Outono transfigurado: Canções do Rosário: Amém.
“Minuto de muda destruição. Que te obriga a ficar em silêncio sobre a escada em ruínas na casa de teus pais? Que te obrigou a ficar em silêncio sobre a escada em ruínas na casa de teus pais?”. In: Outono transfigurado: Metamorfose do mal. “... ou inclina-se em silêncio sobre o sono de um guarda que se deixou cair na sua cabana de madeira O silêncio derrete, e esquecido jaz na neve argêntea o frio corpo.” In: Outono transfigurado: Noites de inverno.
[...] e ele caiu em silêncio sobre o seu sangue e a sua imagem, um rosto lunar.” In: Sonho e anoitecer do espírito “... e em silêncio escondi o rosto nas mãos lentas.(...) e eu vi o inferno negro no meu coração; minuto de silêncio reverberante. Silencioso, saiu de um muro caiado um rosto indizível. (...) In: Revelação e Decadência. A poesia de Trakl ao falar sobre o silêncio apresenta um arquétipo poético absorvente, porque misterioso, “formado no satanismo de Baudelaire, na dúvida de Kierkegaard, no niilismo de Nietzsche e no ateísmo de Dostoievski, Trakl tal como eles, nunca coloca a questão religiosa para encontrar qualquer forma de salvação, mas sempre, e apenas, para confirmar uma culpa.”[6] A linguagem seria o próprio satanismo, a linguagem torna-se a própria dúvida, transforma-se no niilismo e no ateísmo de uma existência que não consegue dizer-se, mas que não consegue, também, não dizer-se [não consegue não-pensar-se] e acaba por transfigurar-se em culpa. E, se “o inferno de Trakl emerge como o silêncio absoluto que deus lançou sobre o mundo”[7], podemos falar sobre este silêncio como a própria linguagem que se lança sobre o ente e, contudo, torna-o em sua essência indizível para o outro. “Ficamo-nos sempre pelas palavras, ou melhor, por esta terrível impotência”, escreve Trakl. Poeta personificado numa figura sem voz, “figura simbólica de uma inocência natural e como tal sem linguagem”, fixado na ascese da palavra e na escrita própria daquele que fala consigo mesmo [monólogo], torturado pela lucidez de uma fronteira “inviolável” da linguagem do dizer, no uso da linguagem que se manifesta como negação da própria linguagem, fez de seu não-querer-dizer um dizer de demonstração da impossibilidade da existência em dizer-se e numa quase anterioridade de um silêncio, que acaba apenas por refletir a incapacidade do dizer original, essencial, autêntico do ser. Essa indizível e sempre dita tristeza do mundo na poesia de Trakl é a tristeza do seu mundo e a do mundo dos outros, a de todos os mundos[8], talvez a tristeza do dizível do falar e do escrever como sendo um mundo indizível metaforizado no silêncio da essência intocada do ser: forma única de perder-se e de, no entanto, encontrar-se em outros mundos via linguagem poética.
“Se és um homem, deixa tua fala lá fora” [9]_ este seria, provavelmente o ápice do desconstrucionismo heideggeriano, mas a impossibilidade de um mundo sem linguagem termina, sem escolha, por jogar o ente “ao lugar do mundo que [lhe] foi dado” [10].

[1] Cf. LOPARIC, Zeljko. Ética originária e práxis racionalizada. Departamento de Filosofia. Campinas: Universidade de Campinas. pag. 169-170. [2] Idem. Cf. Ética originária e práxis racionalizada. pag. 169-170. [3] Idem. Cf. citação de Heidegger e comentário de Loparic na obra já mencionada. [4] Idem. Cf. citação de Heidegger e comentário de Loparic na obra já mencionada.

[5] Ainda assim seria necessário dar-se conta que se se está no modo do silêncio, sem pensamento algum, seria preciso abstrair-se por completo de linguagem. E, se não fosse necessário possuir consciência sobre esse silenciar porque seria necessário falar sobre algo que não se pode sequer perceber? De que serviria especular: eu possuo um modo de silêncio na minha consciência que não é dizível, mas, como sei que o possuo? e como sei que não é dizível? se é indizível? Será que a voz interior que se move em reflexões não comporta a recusa do não-silenciar do próprio pensamento? Sandra Fasolo.

[6] Cf. prefácio de João Barrento. TRAKL, Georg. Outono transfigurado: ciclos e poemas em prosa. Assírio e Alvim: Lisboa, 1992. [7] Idem. Cf. prefácio da obra. [8] Idem. Cf. prefácio da obra. [9] Idem. Cf. prefácio da obra. [10] Idem. Cf. prefácio da obra.

A Pérola

A Pérola John Steinbeck “O autor chamou o livro de parábola e convida todos a penetrarem em seu sentido e aplicá-lo à própria vida. Todos nós sonhamos com a nossa pérola, mas será ela a solução de todos os nossos problemas ou a agravação deles e a criação de novos? Deve realmente o homem intervir no seu destino e lutar por modificá-lo? Ou haverá uma sabedoria profunda na conformação? Desde que essas idéias se chocam violentamente com os conceitos convencionais que regem o mundo no sentido positivo da realização, da luta, do esforço pelo que parece inatingível, Steinbeck escolheu como herói de seu livro um índio. Pode-se discordar, repelir e não aplicar pessoalmente a parábola, mas há nela um amplo espaço para a reflexão.” Personagens: Kino, o índio que desejando salvar seu filho Coyotito da morte por envenenamento de uma picada de escorpião, encontra a grande pérola. Muitos infortúnios acontecem após Kino ter encontrado a pérola. Juana, esposa de Kino e mãe de Coyotito. Personagens secundários: o médico da vila, a comunidade de amigos pescador-indígenas de Kino, o Padre, os mendigos da Igreja, os compradores de pérolas do Golfo, o irmão de Kino, Juan Tomás e sua esposa Apolônia, os rastreadores que irão atrás de Kino por causa da pérola. E, claro, Coyotito. “Contam na vila a história da grande pérola_ encontrada e depois perdida. Falam de Kino, o pescador-índio, de Juana, sua mulher, e do garoto Coyotito. E tantas vezes foi contada essa história que se gravou na mente de todos. E como acontece com todas as histórias repetidas que ficam no coração dos homens, há coisas boas e más, coisas pretas e brancas, bens e males sem nada no meio. Se esta história é uma parábola, talvez cada um possa tirar dela um sentido pessoal e ver nela a sua vida. De qualquer modo, contam na vila que ...” A história inicia com um amanhecer na casa de Kino com uma longa descrição do lugar, dos movimentos de Juana e deslocamentos curtos e longos de Kino. Durante a narrativa, há um submodo-cultural_ com origem na raça indígena de Kino que acompanha os seus pensamentos e as suas sensações durante todo o livro: são as cantigas. Não uma somente, várias, a cada acontecimento na vida de Kino a cantiga é então diferenciada na música sentida por ele e no seu significado advindo de alguma circunstância, se é uma circunstância momentânea feliz ou triste ou de infortúnio a Cantiga então se manifesta sob ângulos diferenciados. Kino divaga sobre o amanhecer, “ouve a leve batida das ondas da manhã na praia e torna a fechar os olhos para escutar a música dentro dele. Talvez só ele fizesse isso, talvez todos os homens de sua raça também fizessem. Tinham sido em outros tempos grandes fazedores de cantigas, de modo que tudo o que viam, pensavam, faziam ou ouviam virava uma cantiga. Era assim havia muito muito tempo. (...) Naquele momento mesmo, havia na cabeça de Kino uma cantiga clara e terna e, se ele pudesse dar voz aos seus pensamentos, iria chamar-lhe a Cantiga da Família. (...) Ele continua observando a vida das coisas do seu mundo particular até que o narrador diz: “Kino podia ver essas coisas sem olhá-las.” É uma frase interessante sobre a representação existente na mente de Kino sobre as coisas que o cercam e porque na seqüência ele manifestará duas representações contrárias a partir da pérola, as circunstâncias farão com que sua representação seja outra que não a primeira e se opondo a esta em seu outro extremo. O que acontece na seqüência, um escorpião desce vagarosamente pela corda que segura o berço do menino no teto. “Kino e Juana ficam como que paralisados. Uma nova música lhe chegava à cabeça, a Cantiga do Mal, a música do inimigo, de qualquer inimigo da família, melodia selvagem, secreta e perigosa no fundo da qual gemia a Cantiga da Família.” Embora os esforços de Kino em retirar o escorpião do local em que estava, Coyotito acaba sendo picado "... tinha os olhos cheios de fúria e nos ouvidos o clamor da Cantiga do Inimigo. Juana tenta sugar o veneno do corpo de Coyotito com a boca, os vizinhos que moram nas cabanas próximas se aproximam ao ouvirem os gritos de dor do menino. E todos ali sabiam do escorpião, um adulto podia passar mal, mas uma criança morreria com facilidade do veneno. Juana pede pelo médico da vila, mas todos dizem ‘o médico não virá'." "Então temos de ir até ele_ diz Juana. O cortejo de pescadores indígenas vai até a casa do médico, este se encontra sentado na grande cama do seu quarto, vestido com seu robe de seda-vermelha parisiense [...] ao ouvir do criado o assunto sobre o bebê picado por um escorpião ele dá vazão à sua raiva: será que não tenho mais nada o que fazer senão curar indiozinhos picados de insetos? Sou médico e não veterinário. O doutor não está em casa, diz o criado a Kino. Todos retornam para a praia e para suas cabanas a fim de se prepararem para a saída ao mar em busca de pérolas." “Embora a manhã ainda não tivesse avançado, a miragem nevoenta já estava presente. O ar incerto que aumentava algumas coisas e escondia outras pairava sobre todo o Golfo de modo que tudo o que se via era irreal e não se podia confiar na visão. Assim, aquele mar e aquela terra tinham as claridades agudas e o jeito vago de um sonho. Podia ser que a gente do Golfo confiasse nas coisas do espírito e nas coisas da imaginação, mas não confiava nos olhos para mostrarem, a distância, os contornos nítidos ou qualquer exatidão visual. [...] Não havia certeza no que se via, nem prova de que o que se via estava ali ou não. Mas a gente do Golfo pensava que todos os lugares fossem assim mesmo e isso não lhe parecia estranho.” Kino e Juana vieram lentamente pela praia até à canoa de Kino, que era a única coisa de valor que possuía no mundo. [...] É o baluarte contra a fome. [...] Juana entrou na água, colheu algumas algas pardas e fez com elas uma cataplasma úmida que colocou no ombro inflamado de Coyotito. Era um remédio tão bom quanto qualquer outro e talvez melhor do que o que o médico aplicaria. Mas o remédio carecia da autoridade dele porque era simples e não custava nada. Coyotito ainda não estava sentindo as cólicas. Talvez Juana houvesse sugado o veneno a tempo [...].” Aqui o texto continua com a descrição de Kino pescando ostras no fundo do mar com a intenção de encontrar alguma que fosse valiosa e poder assim ser atendido pelo médico pois teria como pagá-lo ao vender a pérola para os compradores que moram na vila. Mas ele não esquece as Cantigas, “ora, o povo de Kino havia cantado de tudo o que acontecia ou existia. Tinham feito cantigas para os peixes, para o mar raivoso e para o mar calmo, para a luz e para a escuridão, para o sol e para a lua, e as cantigas estavam todas em Kino e no seu povo_ todas as cantigas que tinham sido feitas e até as esquecidas. E quando ele encheu o cesto, havia cantiga em Kino e o compasso da cantiga era o seu coração palpitante que comia o oxigênio da respiração presa, e a melodia da cantiga era a água cinza-esverdeada [...] Mas na cantiga havia uma secreta musicazinha íntima, quase imperceptível, mas que estava presente sempre doce, secreta e persistente, quase escondida no contracanto, e era a Cantiga da Pérola que Pode Ser, porque toda a ostra jogada no cesto podia conter uma pérola. A chance era contrária, mas a sorte e os deuses eram favoráveis. E Kino sabia que na canoa lá em cima, Juana estava fazendo a mágica da oração [...] E desde que a necessidade era o grande e o desejo era grande, a melodia secreta da pérola que podia ser era mais forte naquela manhã. Frases inteiras surgiam claras e macias na Cantiga do Fundo do Mar. [descrição de Kino no fundo do mar] “ e viu então uma ostra muito grande e isolada [...] viu um brilho fantástico e logo a concha se fechou. O coração de Kino bateu num ritmo pesado e a melodia da pérola que podia ser lhe cantou nos ouvidos. [Kino retorna à superfície] “Não é bom querer demais alguma coisa. Isso às vezes afugenta a sorte. Deve-se querer tudo na justa medida porque é preciso ter tato com Deus ou com os deuses. [...] Kino estava relutante em abrir a ostra. Sabia que o que tinha visto podia ser um reflexo, um pedaço de concha que acidentalmente flutuara ou uma completa ilusão. Naquele Golfo e na sua luz incerta, havia mais ilusões que realidades. Juana diz: “Abra.” Ele a abre e lá estava a pérola, perfeita como a lua. Captava a luz, refinava-a e a devolvia numa incandescência prateada. Era a maior pérola do mundo. [...] Para Kino a melodia secreta da pérola que podia ser irrompeu clara e bela, forte, quente [...] Na superfície da grande pérola podia ver formas de sonho. Juana vai ver como Coyotito está e vê que a inflamação estava desaparecendo e o veneno se retirava do corpo. A notícia se espalha rapidamente por toda a vila, “Kino encontrara a Pérola do Mundo”. A notícia chegou ao Padre que ficou pensativo ao lembrar-se de alguns consertos que era preciso fazer na Igreja. Pensou em quanto valeria a pérola e ficou sem saber se havia batizado o filho de Kino ou até, por falar nisso, se o havia casado. A notícia chegou aos negociantes e eles olharam para as roupas de homem eu não estavam tendo saída. A notícia chegou ao médico [...] “ele é meu cliente, estou tratando o filho dele de uma picada de escorpião.” [...] A notícia chegou aos mendigos da Igreja e os fez rir um pouco de prazer, porque sabiam que não há ninguém que dê esmolas no mundo como um homem pobre que de repente tem um golpe de sorte.” [...] Gente de todas as espécies criou interesse por Kino_ pessoas que tinham coisas para vender e pessoas que tinham coisas para pedir. Kino tinha achado a Pérola do Mundo. A essência da pérola se misturou com a essência dos homens e então um curioso resíduo negro se precipitou. Todos os homens ficaram de repente relacionados com a pérola de Kino e a pérola de Kino passou a fazer parte dos sonhos, das especulações, das tramas, dos planos, dos futuros, dos desejos, das necessidades, das cobiças [...] A notícia fez subir à tona uma coisa infinitamente negra e má na vila, a destilação escura era como o escorpião ou como a fome quando se sente o cheiro de comida ou como a solidão quando o amor é negado. [...] Mas Kino e Juana não sabiam de nada disso. Desde que se sentiam felizes e exultantes, pensavam que todo o mundo participava dessa alegria.” Juan Tomás, irmão de Kino, perguntou a ele o que iria fazer agora que era um homem rico. Então, Kino “vê” na incandescência da pérola imagens de seus sonhos tomando forma, imagens das coisas que o espírito de Kino havia examinado no passado e de que havia desistido por serem impossíveis. Viu na pérola a si mesmo e a Juana e a Coyotito ajoelhados diante do altar para se casarem agora que podiam pagar. [...] Viu na pérola como estavam vestidos [...] Era o que estava na pérola [...] Segue uma seqüência de coisas desejadas por ele ao longo da vida. “Os viznhos, apertados e silenciosos dentro da cabana, acompanhavam com movimentos de cabeça os saltos da delirante imaginação de Kino. [...] Mas a música da pérola estava cantando [...] Juana levantou a cabeça e arregalou os olhos diante da coragem e da imaginação de Kino. [...] Na pérola viu Coyotito sentado diante de uma carteira na escola, como Kino vira uma vez ao passar por uma porta aberta. E Coyotito estava vestido de casaco com um colarinho branco e uma gravata larga de seda. E não era só: Coyotito estava escrevendo numa grande folha de papel. Kino olhou orgulhosamente para os vizinhos: “meu filho era para a escola”. Juana olhou para Coyotito nos seus braços como para convencer-se de que isso era possível. Mas o rosto de Kino bilhava com a luz da profecia: “meu filho vai ler e abrir os livros. Vai escrever e saber escrever. Meu filho vai fazer também contas e essas coisas nos farão livres_ porque ele vai saber e por meio dele nós também saberemos. E na pérola Kino viu a si mesmo e a Juana acocorados junto ao pequeno braseiro da cabana enquanto Coyotito lia um grande livro. É isso que a pérola vai fazer_ disse ele. E Kino nunca dissera tantas palavras juntas em toda sua vida. E, de repente teve medo de ter falado. [...] Naquele momento, havendo dito o que ia ser o seu futuro, criara este. Um plano é uma coisa real e as coisas projetadas são experimentadas. Um plano, depois de feito e visualizado, torna-se uma realidade ao lado de outras realidades_ não podendo nunca ser destruído, mas podendo facilmente ser atacado. Desse modo, o futuro de Kino era real, mas, depois de estabelecido, outras forças se levantavam para destruí-lo, e ele, sabendo disso, tinha de preparar-se para enfrentar o ataque. E Kino sabia de outra coisa ainda: os deuses não simpatizam com os planos dos homens e não gostam do sucesso quando vem por acaso. [...]" O médico aparece na cabana para ver Coyotito. “O menino já está quase bom, diz Kino ao médico. Este lhe diz: “às vezes meu amigo, a picada do escorpião tem um efeito curioso. Parece que há melhoras e, de repente, sem aviso, puff! [...] Às vezes o resultado pode ser uma perna seca, um olho cego ou as costas aleijadas. Ah! Eu conheço a picada do escorpião e sei curá-la.” [...] Kino não sabia disso, mas talvez o médico soubesse. Não podia correr o risco de lutar com a sua ignorância contra o possível conhecimento do médico. Estava na armadilha como o seu povo sempre estava e estaria até que, como ele havia dito, pudesse saber que as coisas que dizem os livros estão realmente nos livros.” O médico examina o menino e observa que seus olhos estão azuis e que o veneno se espalha. Dá a ele um pó branco numa cápsula de gelatina. “Acho que o veneno atacará daqui a uma hora. O remédio que eu dei livrará o menino de sentir dor, mas voltarei daqui a uma hora. Acho que cheguei a tempo de salva-lo.” Coyotito começa a ficar muito vermelho, alguma coisa subia e descia pela graganta e um fio grosso de saliva lhe corria do canto da boca. As contrações dos músculos do estômago começaram e o menino vomitou muito. O médico retorna passado o tempo de uma hora e dá amônia para Coyotito beber, “salvando-o” de morrer do veneno do escorpião. Então, o médico pergunta a Kino: quando acha que pode me pagar essa conta? Assim que vender a pérola, responde Kino.
A narrativa segue com muitas situações envolvendo a família de Kino e a pérola. O final é triste, muito triste, pois a mesma coisa buscada para salvar Coyotito torna-se a causa de sua morte pelas mãos e ambição do homem. O que chama a atenção nessa obra, além da sensibilidade humana, é a representação que determinada "coisa" possui na vida de um mesmo ser humano, como tudo pode ter uma representação diversa, oposta, de alegria ou sofrimento, e tantos outros sentimentos e emoções da natureza humana, conforme sua vontade, mas, talvez, sobretudo, conforme as circunstâncias de vida. Aqui lembra Ortega Y Gasset, "o homem sou eu mais minhas circunstâncias." Coyotito que o diga.
sANdrA & A Comoção por Coyotito