quinta-feira, 20 de outubro de 2005

Linguagem em Platão_ a partir do Crátilo

Questões referentes à linguagem em Platão a partir do Crátilo_ by Sandra Fasolo Explicação via email do Prof. Marcelo Marques[1]: “Você me pede para comentar a idéia de que a linguagem é fundada no inteligível... Peço que você leia a seção em minha tese que trata disso: Le discours, a partir da página 316, sub-seções Liaisons, altérité, fausseté, até a página 339. . não, não há uma Forma da linguagem, apesar de, no Crátilo, em 389D6 e 390A5-6, Sócrates falar em "o nome em si" (auto ekeino hó estin ónoma) em "a forma do nome" (to tou onómatos eídos) ; realmente trata-se de um problema; Veja o artigo CANTO, Monique. Le premier nom du signe. Le sémeion dans la pensée platonicienne. Actes du Colloque de Cerisy. Dir. Petito, J. Ed. Patino, 1988, p.497-509 De qualquer modo, aqui vai a tradução de parte do comentário que faço desse artigo, na p. 330-331 da tese (...) Contra as tendências de interpretação que vêem em Platão uma teoria da adequação (predicacionista ou não) entre o discurso e a realidade, proponho o exame da posição de Monique Canto-Sperber, que discute a teoria platônica da significação tentando destacar uma semiologia aquém da relação de adequação entre lógos e realidade. A autora identifica, nos diálogos, elementos que nos permitem postular uma unidade de homologia estrutural entre a ordem do discurso e a ordem do real, mesmo reconhecendo a alteridade das duas ordens; uma unidade na qual se funda a natureza do discurso e também a do ser: a unidade do sémeion, que é ser e discurso ao mesmo tempo, sendo portanto, já, significação; uma unidade que se instala na alteridade dessas duas ordens e que une essas duas redes diacríticas. Nessa perspectiva, não se trataria mais de correspondência entre dois elementos ou redes exteriores uma à outra, mas de um co-pertencimento na diferença entre elementos que se distanciam mas que se buscam, e cujas relações devem ser perseguidas pelo exame dialético. M. Canto reconhece no "nome em si" (p.500-501), enquanto "causa formal", aquilo no que o legislador fixa seu olhar quando ele estabelece os nomes. "Essa 'forma do nome' recebe seu ser da relação do nome à coisa", "ela define a essência do nome, mas na medida em que ele se relaciona a um ser". O modo de ser do nome já comporta nele mesmo, constitutivamente, a relação àquilo que é outro que ele. A questão do sémeion (p.502) em Platão deve ser formulada, considerando-se o lógos e o real, não como eles se nos oferecem imediatamente, mas enquanto problemas, aquém da oposição das teses naturalista e convencionalista. O estatuto difícil do sémeion (p.503-504) implicaria que o que funda as relações entre o ser e o discurso é justamente o elemento de alteridade presente neles. O sémeion não é estabelecido por convenção; a alteridade do ser e da linguagem não é exterioridade, nem indiferença arbitrária. Finalmente, "o signo é o efeito desse método de diferenciação entre o ser e o lógos que é a dialética" (p.505). A expressão paradoxal "forma do nome" (eídos onómatos) indica que haveria uma forma que assumiria, de fato, a função "ontológica e diacrítica do signo". É assim que M. Canto acaba por descrever o problema da significação em Platão como uma utopia. Uma dupla utopia, porque o ultrapassamento do paradoxo do signo, a saber, a realização da utopia implicaria em um lógos perfeito, em perfeita harmonia com o real; o que, por sua vez, implicaria num retorno a Parmênides, na medida em que o signo não seria mais outro que aquilo de que ele é o signo, não sendo, portanto, mais um signo. Para continuar sendo um verdadeiro signo, é preciso que ele possa ser, também, um signo falso (p.507). O signo é, assim, por natureza, alteridade. Só desse modo ele pode ser compreendido como podendo ser verdadeiro ou falso. Formulada dessa maneira, a questão da "referência" (perí tinos) (todo lógos é lógos de...) adquire um sentido bastante diferente. O esforço de Platão consistiria a ir além (ou aquém) da referência imediata, denotativa. A referência implícita no perí tinos exige uma mediação complexa que traduz o esforço de pensar a relação de significação fundada sobre a unidade (na diferença) entre discurso e ser; só essa unidade tornaria possível o discurso e, conseqüentemente, o discurso falso. Trata-se dos seres e de sua "ação". O ser (ou existência) daquilo de que se trata na ação não é posto em questão; sua existência deve ser suposta. A não-existência não está em questão, pois já foi descartada de maneira bem clara (o contrário do ser). O que importa é estabelecer, através do discurso, os laços que os seres podem estabelecer entre eles, como eles se constituem e, ainda, de que modo os discursos mostram (ou não) os laços que existem entre os seres. (...) Mais alguns pensamentos soltos: . no Crátilo, Sócrates trata, no âmbito do ónoma, aquilo que o Estrangeiro trata no âmbito do lógos (mais elaborado, mais complexo) . o lógos, enquanto fala, discurso é algo da ordem do sensível, do particular; nesse sentido, é imagem; enquanto discurso enunciado ou escrito, é um ser sensível, audível e/ou visível . enquanto significação ele é inteligível; ele remete para algo que não é ele mesmo; essa remissão é o processo da significação: o lógos "perainei ti", faz alguma coisa, isto é, ele significa; . enquanto significação inteligível, o lógos pode ser verdadeiro ou falso, dependendo de como ele "representa", "imageia", "figura" as relações entre os gêneros e as Formas inteligíveis, com relação a um ser determinado; . enquanto discurso articulado, ele é symploké, entrelaçamento, de nomes e verbos (Sofista ... ); o falante, ao falar, se quiser dizer o que é, deve entrelaçar os termos (onómata e rhémata), tendo como referência o entrelaçamento dos gêneros inteligíveis, tal como o Estrangeiro de Eléia propõe; isto é, levando em conta as descobertas da pesquisa dialética desenvolvida; o entrelaçamento das formas inteligíveis, em geral, é regulado pelo entrelaçamento dos gêneros maiores, em particular; . em última instância, não temos como saber se um lógos é verdadeiro ou falso, a não ser examinando-o dialeticamente, isto é, a não ser empreendendo um processo de pesquisa, busca e verificação dialéticas; . o lógos é fundado no inteligível significa: ele participa do ser inteligível e dos gêneros que se entrelaçam a ele; quanto a esse entrelaçamento, o lógos pode expressá-lo ou não; pode expressar as inúmeras relações inteligíveis ou não; . nesse sentido, o lógos é fundado numa estrutura ou numa rede de relações ontológicas, o que quer dizer que, para Platão, o lógos significa entrelaçando diacriticamente e, nesse processo mesmo, remetendo aos entrelaçamentos inteligíveis "reais, objetivos" Veja também o artigo: O'BRIEN, Dennis. Théories de la proposition dans le Sophiste de Platon. In: BUTTGEN, P.; DIEBLER, S.; RASHED, M. (Ed.) Théories de la phrase et de la proposition. De Platon à Averroès. Paris: Ed. Rue d'Ulm, 1999, p.21-41. ‘O lógos, enquanto fala, discurso é algo da ordem do sensível, do particular; nesse sentido, é imagem; enquanto discurso enunciado ou escrito, é um ser sensível, audível e/ou visível’ . enquanto significação ele é inteligível; ele remete para algo que não é ele mesmo; essa remissão é o processo da significação: o lógos "perainei ti", faz alguma coisa, isto é, ele significa’ (Marques) ______
Sandra: em Platão seria difícil aceitar que o lógos pudesse vir a ser algo que ao menos não se encontra entre as Formas como um ‘elemento inteligível’ dada a importância do pensamento (‘da alma consigo própria ou do pensamento exteriorizado’(Sof. ) os quais possuem uma relação direta com a ciência suprema e universal: a dialética. E como isto recai sobre o particular (é sempre um ser individual que pensa e exterioriza o seu pensamento) a questão colocada é: como Platão não estabelece a linguagem como uma das Formas supremas, ele apenas a usa como exemplo de diairesis no Sofista provavelmente com vistas à dialética, como é possível que a linguagem seja ou esteja entre os elementos do inteligível sem ser ela própria uma das Formas? Tendo em vista que, segundo a exposição do Prof. M. Marques o lógos está entre as Formas? A questão da correspondência entre o nome e a coisa, entre o lógos e a realidade traz implícita o eidos. O problema, como explica Marques, é que não há uma Forma para o nome e então a explicação possível deve ser desenvolvida a partir de uma ‘relação’ que inclui sempre a alteridade, poderíamos dizer, inclui necessariamente a Forma do Outro estabelecida no Sofista, pois Platão não aceita nenhuma das suas teses expostas no Crátilo: essencialista e convencionalista. A compreensão do problema se dá, então, a partir do Sofista: o Outro possibilitaria a relação entre o nome e a coisa a partir da idéia de que o nome é o Mesmo, enquanto ele próprio, mas é Outro que a coisa nomeada e Outro ainda quando da união com ela_ haveria assim uma dupla participação do Outro no processo de significação e correspondência do nome à coisa sensível. O objeto é o Mesmo enquanto ele próprio em seu ser particular, mas Outro que o nome, e Outro ainda a partir da união dada por tal relação ontológica-sensível, possibilitando assim a significação do nome à coisa no dizer verdadeiro, na justeza do nome. Ao contrário, quando se une um nome e um objeto partindo de Outro que ele mesmo o discurso falso toma o lugar do verdadeiro. É aquilo que Platão diz no Sofista: o discurso falso é quando se diz aquilo que não é, este ‘não-é’ compreendido não como a Forma do Outro-Não-ser, mas como tendo sido estabelecido a partir mesmo de um Outro que não corresponda à symploké dando origem ao não- verdadeiro, falso, portanto[2]. Nesse ponto a figura do legislador ou do dialético tem papel ímpar, pois eles desejam a verdade ou a justeza dos nomes e assim o contemplar possibilita uma maior aproximação dessa justeza com o pensamento e a symploké entre as Formas supremas. Pode-se até mesmo pressupor que o discurso falso teria seu início na menor unidade do lógos — o lógos é mais amplo que um nome apenas, deve ser visto como discurso articulado e não somente como um nome isolado — a partir do qual dada a falsidade da relação entre o nome e o objeto, entre um simples nome, como se poderia esperar que o discurso — ou o diálogo da alma consigo mesma ou exteriorizada — pudesse vir a ser um discurso verdadeiro se o pensamento já parte, em sua menor unidade, de uma falsa relação ou correspondência? Canto, pergunta ‘o que é então essa forma do nome que tira seu ser da relação do nome com a coisa?'[3] Ela define a essência do nome, enquanto se 'relaciona' a um ser. Quando Canto diz: tira seu ser, está falando da significação ou significado atribuído ao nome em questão. Mais à frente ela fará referência ao legislador-demiurgo[4] (Crat.389 a) o que retorna o problema novamente para a ontologia platônica. Contudo não se pode passar por cima do que o próprio Platão escreveu nos diálogos e assim, o mínimo que se pode dizer é que não se pode dizer que existe uma Forma específica para a linguagem, ao menos não entre os gêneros supremos estabelecidos no Sofista e que a compreensão deve passar por um pensamento que pense a relação de alteridade (Outro-Não-ser) entre as coisas e as palavras com vistas a uma relação entre as ‘coisas’ e a justeza dos nomes. [1] Professor da UFMG na área de Filosofia Antiga_ Doutor pela Universite de Sciences Humaines de Strasbourg França. Tese: L’autre et les autres: a propos de l’altérité dans le Sophiste de Platon. [2] Marques observa que não se deve confundir o não-ser (enquanto parte constitutiva do Outro) com o não-verdadeiro, apesar da relação o não-ser não é o falso, mas condição que possibilita a falsidade. [3] Cf. CANTO, M. Le premier nom du signe... p. 501. [4] Ref. ao Legislador no que se refere à linguagem também nas Leis. Cf. CANTO, M. p. 509.