domingo, 4 de setembro de 2005

Diálogo de Platão_ As Leis_ Livro I

Guerra e Paz _ e as leis que servem de armas contra a dor e o prazer[1]_ by sandra fasolo As Leis, é considerada como a última obra de Platão, a não ser, como observou David Ross[2], que se considere a Epínomis, obra posterior às Leis, como sendo também de sua autoria, correspondendo, assim, a última fase de seus escritos. Além de ser o estudo mais extenso do filósofo_ embora não o seja propriamente em termos de conteúdo nem lógica nem ontologia_ pois são as discussões sobre problemas de educação que ocupam quase todo o diálogo, Platão se volta para as coisas concretas que acabam por ligar a “formulação de leis à suprema virtude do estado platônico, a sophia, se revela (...) e o filósofo converte-se em legislador”[3], sua missão educativa possui, assim, o objetivo de cultivar no homem_ já na primeira infância_ a virtude da alma. A introdução do diálogo, entre as personagens Clinias, o Ateniense, Megilio e o Estrangeiro, coloca a questão da paz e da guerra de uma cidade em relação as suas leis, entretanto, do Estado e da polis Platão, através da fala do Ateniense, fará da questão coletiva uma questão particular, derivando do Estado para a aldeia e para a família chegará a cada homem em particular e este será então relacionado a seguir consigo mesmo: Ateniense: — Pues, qué, será también lo mismo para cada familia de una aldea respecto a las demás familias, y para cada particular com respecto a los demás particulares? Clínias: — Sí. Ateniense: — Y el próprio particular, habrá de mirar-se a sí mismo como a su próprio enemigo? Qué contestaremos a esto? Clinias: — Extranjero ateniense – que te injuriaría com llamarte habitante del Àtica, y me parece que más bien mereces se llamado com el nombre mismo de la diosa _ has proyectado sobre nuestro discurso una nueva claridad, com retraerlo a su principio, de suerte que ahora te será más fácil reconecer si tenemos razón para decir que todos son enemigos de todos, así los Estados como los particulares, y que cada individuo está en guerra consigo mismo. Ateniense: — Quieres explicarme cómo puede ser eso? Clinias: — Por lo que se refiere a cada individuo, la primera y más excelente de las victorias es la que sobre sí mismo consiga, así como la más bochornosa y funesta de las derrotas es ser vencido por uno mismo; todo lo cual indica que cada uno de nosotros sufre una guerra intestina.[4] Antes de analisarmos mais de perto essa passagem do diálogo, torna-se importante mencionar que as personagens discutirão sobre as leis em relação às guerras externas e internas de um Estado, o Ateniense relembrará dois poetas, dirá que o poeta Tirteo é o homem que mais que ninguém no mundo tem estimado as virtudes guerreiras das guerras externas, oporá então, a Tirteo, o poeta Teognis para o qual a guerra se distingue pela justiça, a prudência e a temperança, unidas com a força, pois para que um homem seja fiel e incorruptível na rebelião precisa reunir todas as virtudes. Platão discorrerá depois sobre os bens: a saúde, a beleza, o vigor, a riqueza; sobre as virtudes: a prudência, a temperança, e da mistura da virtude com a força nasce a justiça; também sobre os prazeres, desejos, todas as inclinações, cóleras, temores, perturbações que a adversidade suscita na alma, a embriaguez que ela faz nascer na posteridade e aprovando-as ou condenando-as (o legislador) de acordo com a reta razão, fará a afirmação de que a dor deve ser combatida com uma série de exercícios e que contra a sedução (portanto, contra o prazer) se exercita a disciplina através da força. Nota-se que a disposição da alma está colocada como um dos primeiros pontos a ser discutido, este estado de alma e a preocupação em cultivar as virtudes aparecem ligados à questão da guerra-paz, com suas dores e prazeres, antes no homem do que na família, antes no homem do que na aldeia, no Estado e em relação aos Estados externos, pois é nestes que aparecerão de forma concreta as atitudes do homem virtuoso. Platão parte assim da alma do próprio homem como fundamento para qualquer ação exterior. Em meio a todas essas questões surgem as discussões referentes ao hábito dos gregos em realizar banquetes e o uso excessivo do vinho[5] , pode-se ver aqui duas relações quase contrárias entre si: o vinho bebido em demasia pode fazer surgir no homem estados que ele tenta controlar em suas atitudes habituais, assim uma alma que parece virtuosa acaba por revelar-se sem virtudes, ao passo que uma alma realmente virtuosa não parecerá outra coisa senão o que já era; mas isso não é uma “lei”, o vinho pode, em alguns casos, fazer com que o homem, embora virtuoso, deixe-se guiar momentaneamente por outro sem capacidade diretiva, se a embriaguez lhe tira as energias necessárias para combater a dor e se entregar rapidamente aos prazeres sensíveis, o homem virtuoso corre o risco de perder-se entre a guerra e a paz que se agitam dentro de sua alma_ virtuosa ou não. Numa das passagens o Ateniense pergunta quem é mais covarde, aquele que sucumbe à dor ou aquele que se deixa vencer pelo prazer? Ao que Clinias dirá que aquele que cede ao prazer é inferior a si mesmo de maneira mais vergonhosa do que aquele que cede à dor. O Ateniense perguntará então o que pode fazer do homem tão forte a ponto de ir tanto contra o prazer como contra a dor? Megilio intervém aqui dizendo que é fácil citar um grande número de leis que nos dão armas contra a dor, mas que não será fácil alcançar isto em relação ao uso dos prazeres. Nesse sentido, é exatamente no excesso do vinho e, portanto, na embriaguez desmesurada, que o homem pode ser visto em toda sua força, fazendo prevalecer, então, em suas atitudes, se será capaz de tornar-se guerreiro e cidadão ou se covarde e distanciado da virtude, pois esta é uma das armas para vencer a guerra no interior de si mesmo, mas, apesar disso, lutar contra o prazer. É pouco provável que Platão tivesse em mente, nessa fase de seus escritos, os fragmentos de Heráclito, mas façamos uma analogia da idéia platônica de guerra-paz com a de Heráclito, por nos parecer que o fragmento deste ilustra as relações feitas até agora: Fragmento 117. Um homem quando embriagado, deixa-se conduzir por uma criança inexperiente, a vacilar e sem saber para onde vai, com a alma úmida[6]. Um homem quando embriagado nos faz relembrar que Platão após introduzir o tema da guerra e da paz, mas antes de falar sobre a dor e o prazer, discorre sobre dois Poetas: Tirteo e Teognis, ora a embriaguez serve igualmente ao poeta, ainda que de outra forma, pois enquanto alma úmida_ não pelo vinho, mas pela inspiração poética[7] concedida pelos deuses, o poeta talvez seja aquele que melhor revele e descreva em seus versos a guerra e a paz da alma do homem na luta consigo próprio, ainda que no diálogo Platão se refira a todos os homens, pois tem em mente a educação para o desenvolvimento das virtudes. Em ambos os casos, ter a Alma úmida pelo vinho ou pela inspiração divina talvez simbolize um estar muito próximo do prazer sensível em relação ao prazer da contemplação intelectual. Para Heráclito é estar distante do logos, é ter uma alma insuficiente para ver o universo e o seu devir, pois uma alma embriagada não possui direção. Só o fogo/logos pode ter uma capacidade diretiva para o homem. Portanto, aproximar-se do logos conduz a transformar-se em uma alma-não-úmida, para que não se limite a perceber somente o sensível que se mostra diante dos olhos_ e aqui lembramos a questão da doxa em Platão, como sendo o grau mais distante das formas verdadeiras e eternas na teoria platônica_ assim, para Platão, a alma úmida pode ser um aproximativo da insuficiência e imperfeição do próprio pensar ainda imerso em ilusões e a embriaguez excessiva aquela que cede demasiado rápido às dores, às dores da alma, e se consola com o prazer do sensível. Essa oscilação entre um prazer e outro implica em abandonar um deles, o que pode ser visto como dor, a privação é algo que se aproxima da dor. Prazer, dor, guerra e paz, vinho e missão educativa estão ligados pela idéia de cultivar a virtude. Jaeger, na obra Paidéia, comenta a respeito dessa relação da ação educativa das Leis: o seu ideal da paidéia, se nos fixarmos no que a sua essência tem de mais íntimo, é o domínio de si e não o domínio sobre os outros por meio da violência exterior, como para os Espartanos. Como educador (Platão) busca um meio de contrastar a qualidade que tem em mais alto apreço e encontra-o na embriaguez gerada pelo álcool. A embriaguez intensifica as sensações de prazer e debilita as energias espirituais. É como se o homem voltasse à infância. Esse estado é a pedra de toque (...) assim a alma deve igualmente se expor à tentação do prazer, para se fortificar contra ele.[8] A embriaguez intensifica as sensações de prazer e debilita as energias espirituais. É como se o homem voltasse à infância. Percebe-se aqui os dois lados: se a alma deve igualmente se expor à tentação do prazer, para se fortificar contra ele, deve-se levar em conta que se suas energias espirituais estão debilitadas não se pode esperar que este homem saiba conduzir-se de forma sóbria e sensata como faria se suas energias não estivessem enfraquecidas, pois quando embriagado excessivamente pode se deixar conduzir sem prudência ou temperança, como a própria criança inexperiente o faz vacilando entre opiniões, aparências, distanciadas ainda da virtude. A virtude estaria assim, segundo a analogia feita, distante de crianças inexperientes, como se o homem voltasse à infância, pois uma criança não tem ainda capacidade diretiva em seus atos e desejos, precisa que lhe mostrem, que haja alguém com capacidade de conduzi-las por um caminho que as faça discernir tais virtudes. Aqui existe um elo da elaboração das leis para aqueles que freqüentam os banquetes e para a educação das crianças, o elo é a disciplina dos instintos. Quanto aos banquetes, Platão diz que é preciso ter um chefe que seja inimigo do tumulto e que diante de um banquete regado por tanto vinho alguém seja sóbrio e sensato para conduzir a reunião, é nos banquetes precisamente o lugar em que se pode perceber a guerra e a paz que está no interior dos homens, pois o vinho as faz ressurgir. Jaeger comenta a esse respeito, Segundo Platão, o preconceito espartano contra os banquetes e o uso do vinho não é o meio mais adequado para educar o homem na sophrosyne, o beber, tal como tantos outros chamados bens da vida, não é em si nem bom nem mau (Leis, 638 D-639 A). Platão exige que nos banquetes impere uma severa disciplina, cujo instrumento deve ser um bom presidente de mesa, que refreie os elementos caóticos e selvagens, e os encaminhe para um verdadeiro cosmos.[9] Quanto à educação do indivíduo, na primeira infância, Platão destaca a maneira como as crianças deveriam ser educadas para desde cedo adquirirem a capacidade diretiva das virtudes. ‘Criança inexperiente’, infere-se, pode ter uma força diretiva, só que inversamente às virtudes, pois “a infância não conhece sossego, despende um movimento incessante que não se pode acorrentar a um local estabelecido, mas apenas encaminhar numa determinada direção. O homem possui o sentido da ordem e da desordem nos movimentos, o que chamamos ritmo e harmonia.”[10] Então, não é na ordem e na desordem da alma que habita tanto a dor, como o prazer? Produzindo tanto a guerra, que existe dentro do devir de cada alma, como a paz desse mesmo devir? Nesse sentido, a metáfora guerra-paz, de Heráclito, e almas-úmidas têm tanta força quanto as almas-não-úmidas na capacidade diretiva, apenas com direções opostas, e, por isso, a preocupação de Platão, a qual faz alusão já no início do diálogo, à guerra interna de antagônicos que habitam a alma e que acabam por desencadear a ordem ou a desordem, o prazer ou a dor, onde a maior delas talvez seja aquela travada dentro dos pensamentos, a guerra das próprias idéias, como se o homem oscilasse entre dois exércitos, que disputam um mesmo espaço e ora se deixasse guiar por um (a doxa, o sensível, as aparências, os instintos) ora, desse a vitória ao outro (o pensar que se eleva pelas virtudes). A força para combater a dor e o prazer permitiriam que a guerra não se colocasse acima da paz, pois é esta que implica em temperança e prudência na alma do homem platônico tornando-o virtuoso desde a infância_ por isso, o que está descrito nas Leis, teria o objetivo de cultivar no homem, desde pequeno, a força para discernir entre o prazer excessivo ou sensível e o prazer intelectual, sem ceder rápido demais ao primeiro como forma ilusória de abandonar a dor, estratégia que apela para algo externo, e procurar na temperança e prudência, a força de ser virtuoso, o prazer da contemplação intelectual. Assim, os excessos são prejudiciais e, por isso, as leis e a educação, para que o homem possa já na infância saber contê-los, pois a guerra e a paz travada no interior de cada homem depois se refletirá na família, no Estado e nas guerras externas. [1] O título aí atribuído não faz parte do diálogo em questão, sendo apenas uma referência a alguns dos assuntos discutidos no diálogo e aos quais se pretendia centrar os comentários a partir do Livro I. [2] David Ross, Teorias de las ideas de Platón: el orden de los diálogos. 2.ed. Ediciones Cátedra: Madrid, 1989. P. 15. [3] JAEGER, Werner Wilhelm. Paidéia: a formação do homem grego. 3. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994. p. 1308 [4] PLATÓN. Obras Completas. Las Leyes. Livraria do Globo: Madrid, 1928. p. 64-65. [5] Apenas a título informativo é interessante a observação que Baudelaire faz no seu livro O Poema do haxixe, onde descreve os efeitos benéficos e nocivos do vinho e da droga, em uma das descrições sobre o vinho ele afirma: “existem bêbados ruins; trata-se de pessoas ruins por natureza. O homem mau (que bebe) torna-se execrável, assim como o bom torna-se ótimo (...) Aliás, nem sempre o vinho é aquele terrível lutador seguro da vitória, que jurou não ter nem piedade nem misericórdia. O vinho é semelhante ao homem: nunca saberemos até que ponto podemos prezá-lo e desprezá-lo, amá-lo e odiá-lo, nem de quantas ações sublimes ou delitos monstruosos ele é capaz. Não sejamos mais cruéis com ele que com nós mesmos, e tratemo-lo como nosso igual.”. Baudelaire, Charles. O poema do haxixe. Rio de Janeiro: Clássicos econômicos Newton, 1994. [6] Cf fragmento 117 na obra de Kirk , G.S., RAVEN, J.E. Os filósofos pré-socráticos. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 1994. p 211. [7] A inspiração filosófica, colocada por Platão de forma diferenciada da inspiração poética, pode ser lida no Fedro, 249ss, onde Platão escreve a respeito da inspiração dos filósofos: "A alma que não contemplou nunca a verdade jamais poderá tomar a forma humana. Pois o homem tem de atingir o conhecimento através daquilo a que se chama 'forma' - uma unidade conseguida pela reflexão a partir de muitos atos de percepção; e isto é a recordação de coisas já vistas pela nossa alma quando acompanhava os deuses, desprezando as coisas a que chamamos reais e erguendo os olhos para a verdadeira realidade. Daí ser justo que apenas o espírito do filosofo tenha asas; pois que ele está sempre, na medida do possível, a meditar na recordação daquelas coisas cuja contemplação torna divina a divindade. Assim, o homem que se serve como deve destes meios de recordação está sempre a ser iniciado no mistério perfeito e só ele se torna verdadeiramente perfeito; e sendo exaltado acima dos interesses humanos para comunicar com o divino é censurado e tido pelo mundocomo um louco, pois o mundo não pode ver que ele está possuído de inspiração divina". Cf. F. M. Cornford, Pricipium Sapientiae. Lisboa: Calouste-Gulbenkian, 1989. [8] JAEGER, Werner Wilhelm. Paidéia: a formação do homem grego. 3. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994. p. 1320. [9] Idem, Paidéia, p. 1309. [10] Idem, Paidéia, p. 1320.