terça-feira, 27 de setembro de 2005

Estudos sobre as Investigações Lógicas de Husserl

À luz de suas leituras das Investigações Lógicas de Husserl, disserte sobre a crítica ao Psicologismo. Na Introdução à 2 ed. da obra Abreviatura de Investigaciones Lógicas, Husserl diz que ‘reformulou radicalmente a vacilante introdução, retificando o nome de psicologia descritiva que, então, dava à fenomenologia exposição à confusão essencial’, o que já demonstra inicialmente que pretendia opor-se ao Psicologismo. ‘A descrição psicológica realizada na experiência externa se assemelha à descrição dos processos da natureza na experiência externa e se contrapõe à descrição fenomenológica, a qual exclui todas as interpretações transcendentes dos dados imanentes, como a que os interpreta como ‘atividades e estados psíquicos de um eu real.(...)’ Havia uma divergência de opiniões quanto ao tratamento da lógica e quanto ao fato de que a Psicologia cobrava, também para si, a completa preponderância desta ciência. Husserl destaca que diferentes autores, como já dissera S.Mill, empregam palavras iguais para distintos pensamentos e que ‘mesmo dentro da Psicologia não existe unanimidade em todos os pontos’, aqui parece estar mais uma crítica feita por ele em relação ao Psicologismo. Husserl diz, a seguir, que é necessário voltar a esta questão antes de dar uma direção à correta definição da lógica, pois a única contribuição do Psicologismo se reduziu a reconstruir sistematicamente a lógica em relação aos seus princípios, dando-lhes uma ordem (não saberia dizer quais são os princípios). Tais explicações foram consideradas por Husserl como sendo insuficientes. Husserl faz outra crítica semelhante no item 2-Necessidade de uma nova explicação quanto as questões de princípio, ainda na Introdução da obra: ‘Os fins de uma Ciência se expressam em sua definição. (...) também não é suficiente apenas definir previamente com toda a exatidão o objeto de uma ciência. Esta, progride e se desenvolve e as definições mudam de acordo com a evolução. Cada ciência tem uma esfera que é uma unidade objetiva fechada, porque o reino da verdade se divide em distintas esferas. O interesse teórico pode satisfazer-se, em princípio, num círculo mais reduzido e afundar nele antes de seguir ramificações mais amplas. Outras vezes pode produzir-se uma ‘confusão de esferas’, e isto é o mais perigoso porque se incluem numa presumida unidade diferentes elementos (heterogêneos) e, como conseqüência, fixam-se objetivos, empregam-se métodos errados, interpretam-se falsamente os objetos, etc. Este perigo é muito maior nas ciência filosóficas e, por isso, a questão de seus limites têm mais importância que nas naturais. No que segue demonstraremos que a lógica tradicional e, especialmente a lógica atual de base psicológica, tem sucumbido a este perigo.’ Só há dois caminhos para a lógica: considerá-la como um disciplina teórica, independente da Psicologia e concebê-la como uma tecnologia que depende da Psicologia. Husserl parte então da tentativa de definir com exatidão o que seja lógica, seu sentido, justificativas, relação com a psicologia (...) com a intenção de que o resultado da investigação seja uma ‘ciência nova, puramente teórica, fundamento de toda a classe de conhecimento científico, a priori e demonstrativa, a que buscava Kant e todos os defensores de uma lógica ‘formal’ ou ‘pura’ e que não puderam encontrar por não haver compreendido nem definido corretamente seus conteúdos e sua extensão’. Depois faz uma crítica de que ‘o conhecimento teórico não é conhecido, pois mesmo aqueles que cultuam a matemática, ideal de toda ciência possível, são incapazes de explicar cabalmente a eficácia lógica de seus métodos e os limites de sua justa aplicação. Esta é a causa do estado imperfeito de todas as ciências particulares, não pela limitação de suas esferas, senão pela falta de clareza e racionalidade dentro de cada uma delas. Por esta razão, jamais poderão satisfazer-nos teoricamente (...).’ Parece ter uma tendência ao Logicismo, este fica no nível formal de não privilegiar o material contra o Psicologismo, este privilegia o material, as experiências vividas. Para alcançar este fim teórico são necessárias investigações (...) ‘existem ciências que não tratam de coisas reais’ e, assim, como o Psicologismo coloca as coisas num nível empírico observável seria impossível fazê-lo quanto aos objetos não-reais. Diz, além disso, que precisamos ter certeza sobre a verdade, evidência, a qual é uma consciência imediata da verdade, mas não se pode na maioria dos casos ter evidência absoluta da verdade, apenas a evidência de que existem probabilidades o que leva necessariamente a várias hipóteses e, portanto, não à uma única verdade, mas vários caminhos que podem ser tomados através das probabilidades que cada um indicar. 1 -Demonstração da tese psicologista: ‘(...) sempre encontramos atividades ou produtos psíquicos - conceitos, juízos, deduções, induções, definições, classificações - em síntese, psicologia e assim como a arte de elaborar uma matéria obriga ao conhecimento de suas propriedades, a psicologia, especialmente a do conhecimento, tem que ser a que forneça o fundamento teórico para a construção da arte da teoria lógica.’ 2 - Contra o argumento dos psicologistas: ‘a psicologia pode nos ajudar a ver como pensamos, o que é contingente, mas não como devemos pensar e a lógica refere-se justamente a isto: ensinar o correto uso do entendimento. A lógica fundada na Psicologia, diz Herbart, seria um grave erro, como o de uma ética que incisasse por uma história natural de impulsos e fraquezas humanas. 3 - Respondem os psicologistas: ‘o pensamento tal como deve ser não é mais que um caso especial do pensamento tal como é e, portanto, cabe à psicologia investigar, não somente as leis de todos os pensamentos como também as leis especiais do justo juízo’. 4 - Respondem os antipsicologistas: ‘ambas as ciências investigam leis, mas o sentido da palavras lei é diferente em cada caso. As leis da psicologia são leis pelas quais se regem a conexão real dos procedimentos da consciência, uma conexão causal. Mas a lógica não pergunta pela causa e efeitos das operações intelectuais, mas pela verdade de seu conteúdo, pelas qualidade que devem ter e como devem transcorrer estas operações para que os ‘juicios’ resultantes sejam verdadeiros. (...)’ E assim segue a discussão entre psicologistas e antipsicologistas. Husserl diz que ambos descobriram partes da verdade, mas sem delimitações justas para uma verdade total. ‘Esta é a minha opinião e até creio que a parte mais importante da verdade está do lado antipsicologista. (...)’. Diz ainda que a Psicologia é uma ciência de fatos, de experiência, não há nela leis autênticas, exatas, senão que chama leis, generalizações que partem da experiência, valiosas mas vagas, que não podem estabelecer as coisas com precisão, não faz mais do que considerar associações de idéias, decorrendo assim para probabilidades a partir do empírico, mas a lógica não pode ser ‘provável’, é preciso que seja exata, as bases teóricas não podem estar numa espécie de ‘talvez seja’, e as leis naturais do pensamento (inexatas) não podem ser conhecidas a priori, já que partem do empírico, nem são demonstráveis com evidência intelectiva. A principal crítica parece ser quanto a falta de exatidão que leva a Psicologia somente a hipóteses incertas e generalizantes derivadas de probabilidades, exatamente o que a lógica não pode ser. ‘Em outros termos, as leis lógicas, fundamento da unidade de toda ciência, não podem, segundo Husserl, fundamentar-se na psicologia, ciência empírica e, como tal, sem a precisão das regras lógicas. O psicologismo, diz Husserl, não consegue resolver o problema fundamental da teoria do conhecimento, ou seja, o problema de como é possível alcançar a objetividade; ou, em outros termos, como é possível que o sujeito cognoscente alcance, com certeza e evidência, uma realidade que lhe é exterior e cuja existência é heterogênea à sua.’ Em que sentido Husserl pode falar da ambigüidade do signo? Comente. Husserl faz inicialmente uma distinção entre expressão e signo, ‘pois todo signo é signo de algo, mas nem todo signo tem uma significação, um sentido que esteja expresso pelo signo. Este não é mais do que indicação, a expressão, ao contrário, sempre significa algo.’ Como a consciência é sempre consciência de alguma coisa, como tudo parece depender da intencionalidade do sujeito em direção a algum objeto qualquer e como os signos são criados pelas várias consciências que habitam este planeta, eu diria que um determinado signo pode ser entendido de várias maneiras, depende qual a intenção colocada nele pela consciência que o ‘quis dizer’, tudo pode ser dito, mas depende do querer-dizer, da intenção, também depende do que a consciência que ‘vê’ conseguirá apreender, pois pode ser que ela não tenha nenhuma intencionalidade em relação ao signo e não lhe dê nenhuma atenção, pode ser que lhe dispense alguma atenção, mas como sua intencionalidade pode estar voltada para outras coisas no momento, pode ser jogo rápido. Pode ser também que a imaginação distorça o que o signo queria dizer, depende a quantas anda a consciência de quem o está vendo. Para Husserl o importante é a significação, que fica entre o significante e o significado, é a significação que nos remete à intencionalidade que pode ser em dois níveis: expressivo ( é o que é significante) e o indicativo (não é significante ao significado, mas é um sinal, algo que nós atribuímos). Não sei, mas me parece que tudo depende do que eu quero dizer, da forma como quero dizer, da forma como consegui dizer, da forma como o outro conseguiu perceber o que eu quis dizer, etc. A consciência é sempre consciência de algo que ‘depende’ de outros algos? Então é contingente, também, a consciência husserliana? Disserte sobre a unidade ideal da espécie ou a concepção husserliana do significado como espécie ideal. Não compreendo como Husserl possa ter partido de Platão, ele simplesmente joga tudo dentro da consciência de cada um; tudo dentro da consciência, nada fora dela? Mas Platão considerava pouco o mundo sensível e Husserl coloca toda a significação/ ideação (sei lá) no mundo sensível, tira a filosofia do céu para a terra? Mas Aristóteles já não havia feito isto antes? A essência das coisas se encontra nas próprias coisas? Será que eu posso entender o Husserl se eu pensar na famosa frase do Sartre ‘o homem será antes de mais nada o que tiver projetado ser?’ Poderia dizer, se fosse o contrário, se o Husserl tivesse partido do Sartre, que o homem será antes de mais nada o que sua consciência tiver idealizado para si mesma como sendo um universal que, na verdade, é particular porque se dá dentro da consciência de cada um? Por outro lado, a unidade ideal diz que há uma significação originária, algo assim ‘como se fosse’... (não um universal que servisse para todos, mas somente para minha consciência?) mas se não precisa ser realmente correspondente à verdade, não seria fazer pouco caso da busca da verdade?, não entendo, primeiro o cara parte de uma rigidez lógica para depois dizer que as coisas podem ser vistas ‘como se fosse’? Não recai num ‘sofisma’? Por exemplo: eu estou vendo um cavalo ao longe, então alguém ao meu lado diz: — Eu gostaria de ver uma girafa. Pois bem, no momento não há nenhuma por perto num raio de vários e intermináveis duzentos quilômetros. Para que a pessoa não fique me perturbando com o assunto eu digo para ela olhar para o horizonte, para as árvores, as gramas, as flores, o sol e depois ficar olhando lá, bem longe, está vendo?, pergunto a ela. Sim, responde ela, estou vendo o cavalo também, mas não vi ainda a girafa. — Olha para ele como se fosse uma girafa e vamos embora, o.k.? Ela aceita a solução e diz que preferia que a suposta girafa estivesse mais perto para ver melhor o comprimento das pernas e os seus movimentos tão engraçados ao caminhar. Termino dizendo que ela pode imaginar que viu a girafa bem de perto e que após imaginar várias e várias vezes vai acabar acreditando que ela estava perto, bem perto mesmo. Talvez até sonhe com a girafa. Assim, não seria bagunçar demais o mundo com essa atitude de ‘como se fosse’? E depois, se esta pessoa que queria ver uma girafa, não conhecesse nem a girafa e nem o cavalo, nunca tivesse visto nenhum dos dois e eu dissesse inicialmente que o cavalo é uma girafa. Então, a intencionalidade de querer ver a girafa terá sido preenchida e a minha intencionalidade de não ter que ir atrás de uma girafa, também. Deduz-se que: como tudo no mundo, a intencionalidade pode ser manipulada e induzida se a consciência que pergunta souber menos, quase nada ou nada, a respeito do que quer saber, enquanto que a outra, que responde, pode intencionalmente dar um significado que não corresponde à realidade, o que podemos dizer, então, da significação em busca de verdades que estão em questões mais complexas como as filosóficas, já que girafas e coisas concretas são fáceis de servirem como exemplos. Pode ser bem nocivo isto, não? É só na expressão (entendo expressão como linguagem) que pode haver um ‘querer dizer’ intencional, mas existem aí várias camadas de significação. Não sei o que o Husserl diz sobre as camadas de significação, mas poderia haver literatura (ficção, seja qual for) ou filosofia sem elas? Vamos imaginar: cem pessoas estão lendo o mesmo livro, é um livro escrito de forma tão lógica e evidente que nenhuma delas irá interpretar diferente; não há camadas de significação no texto, ele é tão exato, tão claro e apodítico que se torna impossível mais de uma interpretação, isto seria uma maldição para a literatura não é mesmo? Mas, como Husserl fala em intencionalidade da consciência e nos ‘como se fosse’, então ele não poderia negar que um texto pudesse ser criado com jogos de palavras, perfeitos e repletos de subtextos/entrelinhas?, onde a intencionalidade do escritor seria exatamente despertar nas várias consciências que o lessem uma intencionalidade própria de entender o jogo de palavras. Em outras termos: o escritor teve a intencionalidade de que as várias consciências, que tivessem acesso ao texto, idealizassem o que a consciência-própria quis dizer, na verdade, um querer-dizer traduzido, metaforicamente, para a ‘linguagem’ interna de cada uma dessas consciências, o que equivaleria a dizer que o texto, um único texto, pudesse ser lido/interpretado de mil formas segundo o ‘querer dizer’, de cada consciência, originada a partir do texto lido. Pois quando lemos algo sempre queremos que a nossa consciência nos diga outro algo, portanto, ela tem uma intencionalidade que se volta para ela mesma quando está a pensar o próprio pensamento? Como se daria isto quando eu fizesse um monólogo com o meu próprio pensar a partir de um texto lido? Como é o voltar as coisas mesmas de forma abstrata, sem ‘pensar o concreto’, só o abstrato que está no meu próprio pensamento? P.S.: encontrei algumas respostas na obra de T. Eagleton, Teoria da Literatura: uma introdução, 2º cap. Fenomenologia, Hermenêutica, Teoria da Recepção, p. 60-96, que pareceu-me válido fazer um resumo a respeito. Resumo a partir do 2º capítulo: Fenomenologia, Hermenêutica, Teoria da Recepção. Em 1918 a Europa estava em ruínas, devastada pela pior guerra da história. Uma onda de revoluções sociais varreu o continente nos anos subsequentes a 1920, (...) a ordem social do capitalismo europeu foi abandonado pela guerra e por suas turbulentas conseqüências políticas, as ideologias das quais essa ordem habitualmente dependera, os valores culturais pelos quais era governada, também se encontravam em estado de profunda agitação. A ciência parecia ter-se encolhido a uma posição estéril, a filosofia dividia-se entre o positivismo e um subjetivismo indefensável; predominavam formas de relativismo e irracionalismo, e a arte refletia essa espantosa perda de referências. Foi nesse contexto de crise ideológica generalizada, na verdade muito anterior ao advento da Primeira Guerra Mundial, que o filósofo alemão Edmundo Husserl procurou desenvolver um novo método filosófico que oferecesse uma certeza absoluta a uma civilização que se desintegrava. Ele diria mais tarde, em A Crise das Ciências Européias (1935), que se tratava de uma escolha entre a barbárie irracional e o renascimento espiritual através de ‘uma ciência do espírito absolutamente auto-suficiente’. Husserl, como seu predecessor, o filósofo René Descartes, começou a sua busca da certeza rejeitando provisoriamente o que chamou de ‘atitude natural’- a crença mantida pelo homem comum de bom senso, de que os objetos existiam independentemente de nós mesmos no mundo exterior, e de que nossa informação sobre eles era em geral digna de fé. Tal atitude aceitava sem discussão a possibilidade de conhecimento, quando era precisamente isso o que se discutia. Sobre o quê, então, poderemos ter certeza e ser claros? Embora não possamos ter certeza da existência independente das coisas, diz Husserl, podemos estar certos da maneira pela qual as vemos de imediato na consciência, quer seja ilusória a coisa real que estamos vendo, ou não. Os objetos podemos ser considerados não como coisas em si, mas como coisas pretendidas pela consciência. Toda consciência é consciência de alguma coisa: no pensamento, tenho consciência de que meu pensamento está voltado para algum objeto. O ato de pensar e o objeto do pensamento estão internamente relacionados, são mutuamente dependentes. Minha consciência não é apenas um registro passivo do mundo, mas constitui ativamente esse mundo, ou ‘pretende’ fazê-lo. Para termos certeza precisamos colocar entre parênteses qualquer coisa que esteja além de nossa experiência imediata; devemos reduzir o mundo exterior apenas ao conteúdo de nossa consciência - redução fenomenológica - é a primeira medida importante de Husserl.(... ) Todas as realidades devem ser tratadas como ‘puros’ fenômenos, em termos de como eles se apresentam em nossa mente, sendo este o ;único dado absoluto do qual podemos partir. O nome dado por ele a esse método filosófico - fenomenologia - nasce de sua insistência nesta postura. A fenomenologia é a ciência dos fenômenos puros. Mas isso não basta para resolver nossos problemas, pois talvez tudo o que encontremos, ao inspecionarmos o conteúdo de nossa mente, sejam apenas um fluxo aleatório de fenômenos, uma corrente caótica de consciência, e dificilmente poderemos estabelecer sobre isso qualquer certeza. Husserl vai mais longe do que detalhes individuais aleatórios,, os fenômenos são um sistema de essências universais, pois a fenomenologia modifica cada objeto na imaginação, até descobrir o que há de invariável nele. Compreender qualquer fenômeno de maneira total e pura, é apreender o que nele há de essencial e imutável, (...) Husserl fala de seu método como uma abstração ‘eidética’, acompanhada de sua redução fenomenológica. Tudo isso pode ser intoleravelmente abstrato e irreal; e é, na verdade. Mas o objetivo da fenomenologia era, de fato, exatamente o oposto da abstração: era um retorno ao concreto, à terra firme, sugerido pela famosa frase ‘de volta às coisas em si’. (...) A filosofia havia se preocupado demais com conceitos, e muito pouco com os dados reais; assim, ela havia construído seus sistemas intelectuais extremamente pesados sobre as mais precárias bases. A fenomenologia podia ser uma ‘ciência das ciências’, oferecendo um método para o estudo de qualquer coisa: memória, caixa de fósforos, matemática. (...) Ela se oferecia como nada menos do que uma ciência da consciência humana - concebida não apenas como a experiência empírica de determinadas pessoas, mas como as ‘estruturas profundas’ da própria mente. Ao contrário das outras ciências, ela não indagava sobre esta ou aquela forma particular de conhecimento, mas sobre as condições que tornavam possível qualquer tipo de conhecimento, em primeiro lugar. Dessa forma - e como a filosofia de Kant, anterior a ela - era um modo ‘transcendental’ de investigação; o sujeito humano, ou a consciência individual, objeto de sua preocupação, era um sujeito ‘transcendental’. A fenomenologia examinava não apenas o que por acaso se percebesse quando se olhasse para um determinado coelho, mas a essência universal dos coelhos e o ato de percebê-los. Não se tratava, em outras palavras, de uma forma de empirismo, preocupado com a experiência aleatória, fragmentária de determinadas pessoas; também não era uma espécie de Psicologismo, interessado apenas nos processos mentais observáveis nessas pessoas. Ela pretendia desvendar as estruturas da própria consciência e, ao mesmo tempo, desnudar os fenômenos em si. (...) Se Husserl rejeitou o empirismo, o Psicologismo e o positivismo das ciências naturais, também achou que estava rompendo com o idealismo clássico de um pensador como Kant. Este fora incapaz de resolver o problema de como a mente pode efetivamente conhecer objetos que lhe são exteriores. A fenomenologia, ao pretender que a percepção pura revelasse a essência mesma das coisas, esperava superar tal ceticismo. (...) O retorno às ‘coisas mesmas’ e a rejeição impaciente das teorias que não têm raízes na vida ‘concreta’, voltam-se para um consolo que encontra no concreto a resposta para as coisas a serem conhecidas, no que pode ser conhecido pelas pulsações. (...) O conhecimento dos fenômenos é absolutamente certo, ou como ele diz, ‘apodítico’, porque é intuitivo: não posso duvidar dessas coisas (...) pensava que o que é intuído no ato da percepção do fenômeno concreto é algo universal: o eidos do qual fala. (...) os fenômenos já vêm com uma teoria pronta. Tal teoria é, porém, autoritária, já que depende totalmente da intuição. Os fenômenos não precisam ser interpretados, construídos desta ou daquela forma, numa argumentação racional. Podemos notar que a teoria ‘intencional’ da consciência defendida por Husserl, sugere que ‘ser’ e ‘significar’ estão sempre atados um no outro. Não há objeto sem sujeito, e não há sujeito sem objeto.(...) A mente e o mundo foram novamente reunidos - pelo menos, na mente. (...) Se a fenomenologia assegurava, de um lado, um mundo cognoscível, por outro estabelecia a centralidade do sujeito humano. Na verdade, ela prometia ser nada menos do que uma ciência da própria subjetividade. O mundo é aquilo que ‘pretendo’ postular: deve ser apreendido em relação a mim, como uma correlação de minha consciência, e essa consciência não é apenas falivelmente empírica, mas também transcendental. Era reconfortante descobrir isto a respeito de nós mesmos. O positivismo da ciência ameaçara roubar o mundo de toda a subjetividade, e a filosofia kantiana docilmente seguira o mesmo caminho; o curso da história européia, a partir dos fins do século XIX, parecia lançar sérias dúvidas sobre a presunção tradicional de o homem controlava seu destino, a dúvida de que ele já não era o centro criativo de seu mundo. Reagindo contra isso, a fenomenologia restabeleceu ao sujeito transcendental o seu trono. O sujeito deveria ser visto como a fonte e a origem de todo o significado. (...)Na esfera da crítica literária, a fenomenologia exerceu alguma influência sobre os formalistas russos. Tal como Husserl separava entre parênteses o objeto real, para dedicar-se ao ato de conhecê-lo, também a poesia, para os formalistas, isolava o objeto real e em lugar dele focalizava a maneira pela qual era percebido[1]. Mas a principal dívida crítica para com a fenomenologia é evidente na chamada escola crítica de Genebra (...) tentativa de se aplicar esse método às obras literárias (também nas obras filosóficas?). Como acontece no isolamento do objeto real feito por Husserl, o contexto histórico concreto da obra literária, seu autor, as condições de produção e a leitura, são ignorados. A crítica fenomenológica visa a uma leitura totalmente ‘imanente’ do texto, absolutamente imune a qualquer coisa fora dele. O próprio texto é reduzido a uma pura materialização da consciência do autor: todos os seus aspectos estilísticos e semânticos são percebidos como partes orgânicas de um todo complexo, do qual a essência unificadora é a mente do autor. Para conhecê-la, não devemos nos referir a nada que sabemos sobre o autor - a crítica biográfica é proibida - mas tão somente aos aspectos de sua consciência que se manifestam na obra em si. Além disso, interessam-nos as ‘estruturas profundas’ de sua mente, que podem ser encontradas nas repetições de temas e padrões de imagens. Ao perceber essas estruturas, estamos apreendendo a maneira pela qual o autor ‘viveu’ seu mundo e as relações entre ele, sujeito, e o mundo, objeto. O ‘mundo’ de uma obra literária não é uma realidade objetiva, mas aquilo que em alemão se denomina lebenswelt, a realidade tal como organizada e sentida por um sujeito individual. Em outras palavras, as preocupações metodológicas da filosofa husserliana freqüentemente tornam-se, na crítica fenomenológica, o ‘conteúdo’ da literatura. Para perceber essas estruturas transcendentais, para penetrar o interior da consciência de um escritor, a crítica fenomenológica tenta obter a total objetividade e o completo desinteresse. Ela deve mergulhar empaticamente no ‘mundo’ da obra e reproduzir o mais exata e imparcialmente possível o que nela encontra. (...) Trata-se, em outras palavras, de um modo de análise totalmente acrítica, destituída de avaliações. A crítica não é considerada uma construção, uma interpretação ativa da obra que envolverá inevitavelmente os próprios interesses e tendências do crítico: é uma simples recepção passiva do texto, uma transcrição pura de suas essências mentais. (...)Pode assim mover-se com elegância entre textos cronologicamente distantes, tematicamente diferentes. É um tipo de crítica onde a linguagem de uma obra literária pouco mais é do que uma ‘expressão’ de seus significados internos. Essa visão de linguagem, um tanto indireta, remonta ao próprio Husserl. Não há realmente muito espaço para a linguagem como tal na fenomenologia husserliana. Ele fala de um esfera de experiência puramente particular ou interna; mas essa esfera é, na verdade, uma ficção, já que toda experiência envolve a linguagem e esta é inexoravelmente social. Pretender que tenho uma experiência totalmente particular é absurdo: eu não seria capaz de ter uma experiência se ela não ocorresse dentro dos termos de alguma forma de linguagem, na qual eu a pudesse identificar. Para Husserl, o que dá significação à minha experiência não é a linguagem, mas o ato de perceber fenômenos particulares como universais - um ato que deve ocorrer independentemente da própria linguagem. Em outras palavras, o significado é, para Husserl, algo que antecede à linguagem: esta é apenas um atividade secundária que dá nomes a significados de que já disponho. Como poderia eu possuir significados, sem já possuir uma linguagem? Esta pergunta o sistema de Husserl é incapaz de responder. O próprio Husserl numa frase reveladora, diz que a linguagem é ‘conforme à pura medida do que é visto em plena clareza.’ Como seremos capazes de ver alguma coisa claramente, sem termos ao nosso dispor os recursos conceituais de uma linguagem? Consciente de que a linguagem constitui um sério problema para sua teoria, Husserl tenta resolver o dilema imaginando uma linguagem que seria puramente expressiva da consciência - que estaria livre de qualquer ônus de ter de indicar significados exteriores a nossas mentes, no momento de falar. A tentativa está fadada ao fracasso: a única ; linguagem’ desse tipo, que se possa imaginar, seria puramente solitária, manifestações interiores que nada significariam. [1] Existe uma diferença aqui: Husserl, esperando isolar o signo ‘puro’, deixava de lado suas propriedades fônicas e gráficas, qualidades materiais estas precisamente enfocadas pelos formalistas.
sandra fasolo 1999