sábado, 22 de outubro de 2005

2 Anteprojeto de Pesquisa em Filosofia Antiga

Do Sofista para uma nova interpretação da Teoria das Idéias: Fedon, Fedro, República by sandra fasolo [projeto não desenvolvido]
2. APRESENTAÇÃO A partir do nosso estudo sobre o diálogo Sofista de Platão durante o mestrado, onde pesquisamos sobretudo o discurso falso e o não-ser, apresentamos um breve resumo dos resultados de nossa pesquisa sobre o Sofista apontando para algumas interpretações que, julgamos, seria necessário uma pesquisa aprofundada muito além do realizado durante o mestrado. Interpretamos o contexto filosófico sobre a questão do não-ser com o objetivo de elucidar de que maneira Platão demonstra a possibilidade do discurso falso e estabelece a realidade ontológica do não-ser a partir da realidade das Formas Supremas, estruturadas no texto deste diálogo, buscando responder a seguinte pergunta: como o não-ser (tò mè on) vem a ser parte constituinte de uma forma (eidoς) Outro (héteron) possibilitando demonstrar a existência do discurso (logoς) falso sem que este se constitua igualmente como uma forma? É preciso considerar que o não-ser, anteriormente ao Sofista não era tido como uma forma, antes, pelo contrário, estava associado à falsidade e ambos tidos como impossíveis de serem pensados ou conhecidos, daí a negação da existência de ambos utilizada pelos sofistas. Partimos, primeiramente, da gênese da questão sobre o ser e o não-ser através dos fragmentos ontológicos do poema de Parmênides de Eléia e a utilização da tese eleata, por parte dos sofistas, como justificação para o relativismo de seus discursos, pressupondo aqui uma «produção de falsas imagens» da arte da sofística ao poema parmenídico devido à contradição entre o ser absoluto eleata e o movimento que precisa haver na linguagem e no pensamento para a produção do discurso falso, aliás, para a produção de qualquer discurso, falso ou verdadeiro, isto impossibilitaria transpor o ser parmenídico para o relativismo dos sofistas sem a contradição implícita entre o absoluto e a multiplicidade e devir do próprio pensamento. Na seqüência, abordamos o problema do erro e a questão do não-ser dnão-ser diretamente na passagem do Sofista 237a, onde o Estrangeiro de Eléia introduz o assunto. Pressupomos uma concordância de Platão em relação à citação que faz do verso de Parmênides sobre os «não-seres»: relacionamos os «não-seres» à arte de produzir falsas imagens através do logos dos sofistas, desse modo, interpretamos o «não-ser irreal» como outra fabricação dos sofistas em detrimento do «não-ser» enquanto eidos na estrutura ontológica. Por conseguinte, derivamos allós (outro que não as Formas) para os «não-seres» e para o «não-ser irreal», enquanto heteron se refere à forma Outro. Nesta forma suprema Platão coloca o não-ser como parte constituinte da natureza do Outro. Seguimos a seqüência do diálogo para mostrar como Platão estabelece a estrutura ontológica das cinco Formas: Ser, Repouso, Movimento, Mesmo e Outro, descrevendo o método aplicado no Sofista: a diairesis, a synagogé e a symploké das formas relativas. Após isto apresentamos as definições sobre o não-ser e o discurso falso através do texto mesmo de Platão. Finalizamos com uma explicação para a falsidade, a qual, concluímos não é uma Forma, mas uma desordenação da apreensão das «essências» no pensamento daquele que não faz uso da dialética para ascender às formas puras, onde efetivamente se encontra a verdade para Platão, desde que é no eidos que se encontra o «real realíssimo». Dessa maneira, Platão demonstra a possibilidade do erro e do discurso falso enquanto logos sem comprometer a perfeição dos elementos do inteligível na estrutura ontológica estabelecida no Sofista. Seria preciso aprofundar as interpretações realizadas, a partir de conexões de passagens do texto mesmo de Platão, em especial: 1. A contradição do pensamento sofista: ser absoluto e relativismo 2. O não-ser irreal como allós e não-seres 3. Os não-seres de Platão em concordância com os não-seres de Parmênides 4. A análise de Platão sobre os não-seres a partir de Parmênides transposta para a definição do próprio discurso falso 5. A impossibilidade de que o não-ser, eidos, constitua-se como falsidade (ver texto e tabela após no final do projeto) 6. A razão pela qual o erro ou a opinião falsa são da ordem do sensível e não do inteligível 7. Em que medida as tentativas de definições do sofista, o que traz a questão da imagem, estariam relacionados a esta última com o inteligível e sensível. Qual seu status ontológico? 3. RELEVÂNCIA A teoria das formas é central dentro da filosofia de Platão e as interpretações, principalmente após o Sofista tendem a polemizá-la cada vez mais. A relevância da pesquisa se centraria sobretudo numa descrição e interpretação da teoria das formas a partir dos resultados da minha dissertação de mestrado sobre o diálogo Sofista. 4. OBJETIVOS 1. verificar se há uma teoria das idéias perfeita e imutável como Platão pareceu conceber nos diálogos anteriores: Fédon e República. 2. verificar se após o Sofista Platão teria fornecido explicação para a presença e ou participação do não-justo 3. verificar de que maneira Platão trata o não-justo anteriormente ao Sofista 4. feito isto: verificar se há uma ‘virada’ no pensamento de Platão após o Sofista que ultrapassa o comumente estudado: discurso falso e o estabelecimento da realidade ontológica dos gêneros supremos A partir da confirmação dessa hipótese retomar todas as partes dos diálogos da obra platônica que tratam sobre o não-ser para verificar se há uma 'evolução' desse pensamento ao longo dos textos ou se Platão teria reescrito sua obra durante os 20 anos em que deu aulas na Academia[1], num sentido de ficar implícito um pensamento que se reestruturou, a partir do Lísis, por exemplo, onde encontramos a primeira passagem sobre o não-ser, os resultados que serão descritos no Sofista. 5. MÉTODO O método será o mesmo utilizado na elaboração da dissertação A questão do não-ser no Sofista de Platão: descritivo-explicativo ou interpretativo com revisão de literatura especializada, seleção, análise e crítica de material já escrito pelos especialistas da filosofia de Platão. Tradução de artigos e textos — francês, inglês, espanhol — e estudo da língua grega para uma análise mais criteriosa de termos centrais do pensamento platônico. 5. DELIMITAÇÃO DO TEMA Para num segundo momento retornar ao Fédon, Fedro, República para verificar se Platão realmente possuía uma teoria das idéias e em que medida, se houve uma, ela se mantém ou se reformula a partir do Sofista. Pois, conforme o exposto no item delimitação do problema pressupomos uma "falha" na teoria de Platão a partir do não-justo ou, de outro modo, precisaria realmente haver uma "virada" no pensamento de Platão após o Sofista muito além das formas relativas. Analisar questões referentes à teoria das idéias, em que medida se mantêm, o que permanece e o que é reformulado e ou ampliado. Nesse sentido, os especialistas tendem a analisar os diálogos anteriores ao Sofista não considerando o que está dito neste diálogo, seria difícil aceitar que Platão, tendo fundado uma Academia que se utilizava, principalmente, da obra platônica para seus estudos, não fosse ele próprio, nos vinte anos em que a dirigiu, retomar constantemente sua obra filosófica, também após ter escrito o Sofista. Por isso, ler os diálogos a partir do Sofista, um percurso inverso, por assim, dizer, pode ser um método para encontrar o percurso do filósofo de um modo diferenciado do que em geral, realizam os comentadores. Estes, em geral, tratam os diálogos quase sempre como se fossem isolados, talvez seja ignorar a própria dialética existente entre um diálogo e outro, dialética que explicaria, quem sabe, a conexão da obra de Platão sob uma perspectiva diferenciada. Pressuposto geral: admite imperfeição no mundo das formas desde que se pode admitir a não-presença e assim a falta. Então como explicar que o não-justo é tão ser quanto o ser? Ou o inteligível possui uma falha ou Platão fornece um outro sentido para o não-justo que não signifique ‘falta’. Se se constitui numa falta o pensamento de Platão a partir do Sofista confirmaria a hipótese de que ele não levou até o fim a teoria das idéias, perfeitas, eternas e imutáveis. Se não se constitui numa falta qual seria a explicação para o abandono das formas perfeitas e eternas? Tomemos a passagem em que Platão fala sobre as partes do Outro e na qual ele diz: Estrangeiro: — Logo, o não-justo deve colocar-se, também, na mesma plana que o justo, na medida em que um não é mais ser que o outro. Teeteto: — Certamente. Estrangeiro: — O mesmo se dirá de todo o resto, pois que a natureza do outro, pelo que vimos, se inclui entre todos os seres; e se ela é, é necessário considerar as suas partes como seres pela mesma razão que o que quer que seja. (Sof. 258b) Podemos dizer, em outras palavras, que o não-ser não é menos ser que o ser e que ambos estão em todos os ‘seres'. A questão inicial: 1) em quais sentidos o não-ser pode ser derivado a partir das formas? 2) em quais sentidos ele pode ser derivado no sensível através da participação? Para isso pressupomos para o inteligível e para o sensível três sentidos ou funções diferenciadas: · Inteligível: o não-justo é uma 'subforma' do Outro, mas se o não-ser está em todos os seres, logo o não-justo também está não-justo como outro: aquilo que o ser não- é não justo como falta_ como aquilo que o ser ainda não é · Sensível: não-ser a partir do eidos: presença da forma não-ser como outro: permite a identidade da alma consigo mesma: a mesmidade e diz que o ser não-é uma multiplicidade de outras coisas não-ser como falta: implicaria em correspondência com o inteligível porém admitiria imperfeição entre as formas Como o não-justo pode ser parte constituinte da natureza do Outro, participar entre as formas e não se estabelecer como um movimento de imperfeição dentro da estrutura ontológica dos elementos inteligíveis e também do sensível? O que entendia Platão por justo e não-justo? Qual seria então o status ontológico do não-justo? A partir disso podemos perguntar: há um mundo das formas perfeito após Platão ter estabelecido a estrutura ontológica no Sofista segundo a realidade do não-ser estabelecida no mesmo diálogo? Assim, através da pergunta pelas várias funções do não-ser no inteligível e dos vários sentidos do não-ser no sensível (presença/participação) pressupomos ainda: · a imperfeição no sensível · a função da defasagem reafirmaria a perfeição das formas Qual o status ontológico da parte do não-ser dada como exemplo no Sofista 258 b: não-justo? Pois se é tão ser quanto seu oposto tem-se que se o não-justo é o mesmo que injustiça, poderia ainda Platão manter a afirmação de que o inteligível é perfeito, eterno e imutável? Platão admitiria um eidos de imperfeição no inteligível ou seria então uma falha no pensamento platônico, revista, na qual o filósofo fornece uma explicação nos diálogos posteriores que explicaria tal falha? Se for visto como ‘falta’ implicaria em que o mundo das formas não seria perfeito como o pretendia Platão inicialmente, se é que o pretendeu realmente. Pois se tomarmos os três sentidos do não-ser e este for visto como não-ser Outro, implicaria numa multiplicidade de coisas que não seja o ser-justo e assim não implicaria necessariamente em injustiça, mas na não-presença do justo. Se invertermos esse raciocínio para o ser_ desde que um não é mais que o outro_ teríamos que pressupor também que existe uma falta no ser e que esta falta se traduz pela não-presença do não-ser [não=justo] e que pensada em termos do sensível teria como conseqüência a Justiça, buscada por Platão durante toda sua vida; mas o ser sem tal falta, preenchida portanto pelo não-ser-justo, tornaria o ser completo e no entanto com a presença do não-justo que no sensível poderíamos tomar por injustiça. Também que a injustiça seguiria o mesmo raciocínio feito contra os sofistas os quais transformam o não-ser justo em um não-ser irreal que cria a injustiça como nas formas do dizer universal. Porém, na explicação sobre a arte da sofística na dissertação, sabemos que o discurso falso só é possível enquanto logos do pensar que todavia se situa no sensível, o falso só é possível como um juízo e não implica, portanto, em falsidade na estrutura ontológica das formas. Os comentadores tendem a utilizar dois dos três exemplos fornecidos por Platão no Sofista: não-grande e não-belo, mas o exemplo do não-justo é, em geral, deixado de lado, provavelmente porque este implica numa forma de valor que não é 'vista' empiricamente, é já em seu ponto de partida, abstrata, não-visível, desde que implicará sempre num processo do próprio pensamento em realizar juízos, falsos ou verdadeiros, daí derivarmos todo nosso raciocínio a partir do não-justo e não em relação aos outros dois exemplos, pois algo não-grande pode ser 'dito' por uma relação entre duas coisas que são evidentes sensivelmente, o não-belo, embora de um lado possa ser pensado numa perspectiva estética e portanto sensível, seria, talvez, um exemplo intermediário entre o não-grande e não-justo, pois o não-belo pode ser também derivado como uma forma de valor desde lembremos que o Belo tem para Platão uma conexão com a alma. Deve haver, então, uma explicação para a parte do Outro: não-justo, a qual não signifique 'falha-falta-imperfeição', pois do contrário o inteligível não é perfeito como o pretendeu Platão ou que ao menos haja um outro significado em termos relacionais-ontológicos que forneçam ao não-ser/não-justo outra explicação. Se pensarmos no não-justo enquanto parte constitutiva do Outro isto implica que na participação do sensível todo não-justo tenha o respaldo do inteligível, a injustiça seria apenas o Outro não significando im-perfeição do sensível. É difícil aceitar que o Outro esteja aí para dizer que tudo que é Outro é tão verdadeiro quanto seu oposto, pois mesmo o Ser é Outro. Como Platão poderia admitir tal ‘justificativa’ de imperfeição no sensível? Nesse sentido é preciso que o Outro possua vários significados para explicar, por exemplo, as formas abstratas de valores ou, então, Platão teria abandonado o mundo perfeito das idéias, se todo o Outro é verdadeiro e perfeito na estrutura ontológica, até mesmo o discurso dos sofistas poderia ser justificado como Outro e, portanto, verdadeiro e ascendendo à perfeição do inteligível. Os comentadores, em geral, escolhem os outros dois exemplos dados por Platão no Sofista: o do não-grande e do não-belo, é mais fácil aplicar o resultado da forma do não-ser a coisas que correspondam a ‘tamanho’ e a ‘qualidade’, são coisas ‘concretas’ que podem ser verificadas através mesmo do olhar sobre as coisas sensíveis, não é necessário, a princípio, as formas a não ser a partir do instante em que algo visto sensivelmente se coloca como um problema de ordem inteligível. Mas quando se trata do não-justo implica em uma forma abstrata de valor presente no intelecto e na alma, embora possa ser evidente um ato injusto diante do olhar de alguém da mesma maneira que algo não-grande e não-belo, há algo anterior a isso que reside no pensamento e na alma daquele que pratica tal ato. A questão reside nesse ponto: na alma e no pensamento. Quando os especialistas utilizam o exemplo do não-justo tendem a explicá-lo via não-grande e não-belo, utilizam o mesmo raciocínio para coisas que não são formas abstratas de valores e para coisas que o são. É difícil de aceitar que Platão, preocupado a vida toda com a Justiça (vide República) não fizesse diferença entre tais exemplos contidos no Sofista. E se há diferença deve haver também ‘funções’ que os diferenciem uns dos outros_ não deveria a diairesis estar presente também aqui através de suas diferenças e semelhanças? Ainda, seria possível pressupor que não são apenas 3 funções diferentes implícitas no Outro, pois o raciocínio que o próprio Platão faz para estabelecer as formas supremas até chegar no não-ser trazem implícito diferenças de como o Outro ‘atuaria’ entre as formas. Isto implica que tais diferenças teriam que ser mediadas para o sensível e para a alma e o intelecto. Então temos as duas hipóteses principais: 1) Platão justifica a imperfeição do sensível através do Outro, pois se o Outro implica apenas no diferente, logo tudo no sensível é perfeito já que tem sua participação na forma Outro-diferença. 2) Platão fornece diferenças também quanto à função da forma Outro dentro dos elementos do inteligível e consequentemente na presença e participação no sensível possibilitando que o não-justo não seja justificado através da simples diferença, mantendo dessa maneira sua teoria das formas de um mundo perfeito. 3) A possibilidade de encontrar uma explicação através da seguinte distinção: o não-ser é a forma, mas quando se diz "é" , "não é", já se está predicando a partir do pensamento, do logos, já não seria mais referência de Platão à forma em si mesma, mas à produção humana do próprio pensar. Apenas quando Platão usa não-ser é que estaria se referindo à forma, quando usa a predicação já estaria implícito ser da "esfera" do sensível, do pensamento e não da essência em si, pois de fato o termo "ser" da expressão "não-ser" nunca é substituído durante todo o texto do Sofista, por uma ação, por um verbo que leve à predicação dentro da estrutura ontológica das formas, os exemplos fornecidos aí por Platão são antes atributos, qualidades, que o verbo ser enquanto uma espécie de dynamis capaz de confundir o "é" que denota capacidade de agir e sofrer, por "ser" ou por "justo" belo" grande". O uso do verbo copulativo seria, então da ordem do pensamento e, portanto, do pensamento que reside no sensível e não entre as formas, pois do contrário, seria um pensamento 'puro' ou em "si mesmo", mas só as formas o são. Aquilo que é predicado após o verbo seria então uma 'forma' inteligível e dizer que algo é ou não é constitui-se desse modo, em fazer uso do logos que podem dizer o que é uma forma e o que não é. [1] Diógenes Laercios faz referência a isso em sua conhecida obra: Vida e obra dos filósofos ilustres, dizendo que Platão teria reescrito sua obra muitas e muitas vezes.