sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Os paradoxos filosóficos de Riobaldo em Grande Sertão: Veredas

by sandra adriana fasolo

"Eu estou contando assim, porque é meu jeito de contar. [...] Isso é como jogo de baralho. Riobaldo por Rosa na vereda 114" “Mire: veja, o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas — mas que elas estão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou (vereda 39)”

Pressuposto[1]-[2]_ A questão de Riobaldo sobre a existência do diabo inicia como sendo da esfera da metafísica e através da resposta final, encontrada pelo personagem-narrador, a dúvida riobaldiana acaba sendo transposta para a esfera ética da natureza humana. Pontos convergentes_ oscilações de tempos narrativos e do próprio tempo interno de Riobaldo, oscilações filosóficas nas divagações de Riobaldo, a dialética do perguntar e responder contínuo «funcionando» apenas como base para o modo de ser riobaldiano, uma dialética da percepção de vida subjacente às inclinações empiristas do nosso filósofo do sertão. A obra maior de Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas[3]-[4], narra a vida do jagunço-filósofo-poeta Riobaldo em um monólogo dirigido a um interlocutor oculto, pois não há em nenhuma passagem da narrativa uma resposta do personagem-interlocutor ao personagem-narrador «Riobaldo», tornando o diálogo entre ambos somente inferido. Dentro do monólogo a vida de Riobaldo é narrada por ele mesmo em uma alternância do que poderíamos chamar de «tempo riobaldiano», desse modo, considera-se, há o tempo presente onde ele conversa com o interlocutor e há o tempo «como se fosse» presente, no entanto, representado em lembranças e re-lembranças. Nesse sentido, o pensamento e discurso riobaldiano seriam a mesma coisa, salvo que é ao diálogo interior e silencioso da alma consigo mesma[5] que leva Riobaldo à exteriorização das lembranças ao interlocutor misterioso tomando o passado em uma dupla representação: a representação das lembranças e a representação de um tempo que mesmo estando no movimento de retorno do passado para o presente ultrapassa o dizer-narrativo para recriar a realidade do agora em uma dupla ficção: a da obra em si mesma e a ficção do passado relembrado pelo Poeta-Filósofo. Mas, Riobaldo o sabe, o agora narrado por ele é passado e ainda assim se permite revivê-lo em recordações como se as imagens ao retornarem pudessem trazer junto cada instante do sertão, ou seja, da própria vida. E, se a corrente que emana da alma e sai pelos lábios em emissão vocal[6] torna-se o discurso para além do pensamento de Riobaldo, então o discurso manifestado em lembranças trazidas de volta «re-apresentadas novamente pela voz riobaldiana», conduz e impregna não só a ele, Riobaldo, como também ao leitor, de um tempo como se fosse «o agora». É o pensamento em movimentos de lembranças desdobrando-se duplamente na ficção: Riobaldo faz ficção de sua própria vida. A sutileza deste «tempo riobaldiano» estabelece, portanto, uma duplicidade de tempo presente extremamente sutil, há o tempo presente do monólogo, o «diálogo entre Riobaldo e o interlocutor misterioso» e há o tempo presente do que já ocorreu contado «como se fosse» presente, contudo passado. Grande Sertão: Veredas poderia ser definido como uma longa narrativa de recordações, ora se move pelo diálogo interior e silencioso e ora se move pelo diálogo exteriorizado fornecendo ao leitor uma representação de imagens que se pretende ser ação de uma vida, contudo, já decorrida.[7] Se considerarmos isso diante do ponto de vista de que o narrado não é mais presente em termos do empírico, não está mais acontecendo, estando imerso num plano essencialmente de lembranças trazidas de volta pela memória do personagem-narrador, é possível estabelecer uma aproximação com a filosofia de Bergson. Se, por outro caminho, partirmos da narrativa, que está na verdade em segundo plano no que se refere ao tempo riobaldiano presente, então é possível estabelecer uma aproximação com o empirismo enquanto conceito básico filosófico. Pressupomos então que as oscilações implícitas diante de dois tempos presentes do «tempo riobaldiano» apontam para distintas aproximações filosóficas com o pensamento e modo de ser de Riobaldo: 1_ A predominância na narrativa do tempo passado da vida de Riobaldo, contudo sentido como sendo «presente», isto é, a narrativa (lembranças) dentro da narrativa recordada (o instante em que Riobaldo está a recordar), aproxima o modo de ser de Riobaldo com o empirismo. 2_ A predominância do tempo presente do monólogo, isto é, o diálogo de Riobaldo com o interlocutor oculto, pressupõe um Riobaldo abstrativo, essencialmente recordativo e imerso em imagens igualmente abstratas, desde que são representadas e trazidas de volta ao verdadeiro tempo presente da obra. [8] 3_ O movimento do pensamento de Riobaldo é impulsionado pela dialética, porém não é somente através da dialética que ele alcança respostas para tantas e tantas questões humanas, Riobaldo possui a dialética da percepção e isto fez toda a diferença no mundo riobaldiano: uma dialética da percepção[9], no entanto, não será na pura abstração que ele encontrará as respostas sobre a existência do homem e sim pelo que a vida lhe ensinou. O movimento do raciocínio de Riobaldo é explicado por ele logo no início como um «aviso» ao seu interlocutor-leitor: «eu gosto muito de moral. Raciocinar, exortar os outros para o bom caminho, aconselhar a justo» «o Senhor saiba: eu toda a minha vida pensei por mim, forro, sou nascido diferente. Eu sou eu mesmo. Divêrjo de todo o mundo» « para pensar longe, sou cão mestre — o senhor solte em minha frente uma idéia ligeira, e eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amém» (GS:V: p.31)[10] Do ponto de vista do monólogo, o que Riobaldo faz em termos de movimento do seu próprio pensar contém uma enorme predominância de atos recordativos; do ponto de vista do «estar vivendo» ele manifesta inclinações para um modo de ser empirista.Mas tal inclinação é já passado e, contudo, é a parte mais profunda e extensa da obra. Isso acaba por nos conduzir a um paradoxo de seu modo de pensar a própria existência se consideramos a existência destes dois ângulos possíveis de interpretação ao «entrarmos» no tempo riobaldiano. O paradoxo parte das sensações que a personagem acaba por nos provocar, desde que ambas soam autênticas, isto é, ambas as predominâncias parecem autênticas em termos do modo de ser riobaldiano. Mas, afinal, como é o modo de ser predominante do nosso filósofo do sertão? É possível pressupor que a parte empírica torna-se fundamental para o desvelamento final da grande questão metafísica que abre o romance: «o diabo existe ou não existe?» onde então estaria um indício de seu modo de ser empírico que pensamos ser determinante?, pois, ao lado disso, o enredo da vida no sertão em meio aos jagunços, guerras, mortes, as divagações de Riobaldo, suas especulações metafísicas, morais, éticas, uma continuidade de questões filosóficas sobre a natureza e a alma humana estão presentes durante todo o tempo da narrativa e em grande parte associadas à pergunta sobre a existência do diabo. No que se refere às oscilações do «tempo riobaldiano-presente» através, como já foi dito anteriormente, do presente «real» e do presente «como se fosse real» mostra, ainda assim, uma unidade pela recorrência das questões que Riobaldo se coloca a todo instante, talvez este seja o tempo a ser analisado, o tempo de uma «travessia» pensando incessantemente sobre a natureza humana em aspectos múltiplos, do amor ao ódio, do perdão à culpa, do ressentimento à compreensão, da solidão à presença, do sertão que é do tamanho do mundo ao viver que é muito perigoso. Universalizando, o viver seria a própria travessia de cada ser humano em seu mundo circunstancial real e imaginado, pensado, possível_ e, claro, lembrado e relembrado. Mas, a partir de que movimento de raciocínio predominante Riobaldo conduz suas reflexões a respeito da natureza humana?[11] Embora existam oscilações de raciocínios filosóficos, o que implica no modo de ser de Riobaldo, ele não parece menos autêntico em momento algum por viver mais próximo do empirismo ou não, há uma verdade existencial em suas reflexões ainda que elas se oponham entre si, há uma busca por respostas da natureza humana incessante e talvez seja isto que em vez de apontar para um raciocínio em constante contradição, aponte justamente para aquilo que a filosofia nega em seus sistemas: o ser humano é uma multiplicidade em si mesmo, sensações, percepções, perguntas, respostas, pensamentos, lembranças, que por sua vez implicam em sentimentos contraditórios, o amor e o ódio, a dúvida e a certeza, a angústia e a paz, o medo e a coragem, a força e a fragilidade, longe de ser um dualismo a natureza humana constitui-se de paradoxos quando julga a si em relação ao outro e em diferentes circunstâncias. Desse ponto surge a presente questão sobre Grande Sertão: Veredas, quanto à aproximação com o empírico, pois é da predominância deste modo de ser que Riobaldo encontrará a resposta final sobre a existência do diabo, «o diabo existe, ou não existe?» A questão sobre a existência do diabo, «existe ou não existe?» parte de especulações metafísicas para no final da obra voltar-se para a ética do ser humano, ou seja, a pergunta realizada nas primeiras páginas da obra que parece ser de ordem transcendente termina por ser de ordem ética[12]. Para tanto consideramos o início e o final das palavras de Riobaldo, ambas no tempo presente sendo dirigidas ao «senhor doutor», o interlocutor que o escuta,

1_ Início da narrativa: «Nonada [...] Do demo? Não gloso. [...] E o respeito de dar a ele assim esses nomes de rebuço, é que é mesmo um querer invocar que ele forme forma, com as presenças» (p. 24-25) 2_ Término da narrativa, últimas linhas da obra: «minha idéia confirmou: que o diabo não há! É o que eu digo, se for [...] existe o homem humano. Travessia.» Se partirmos da resposta final encontrada por Riobaldo é possível pressupor: A existência do diabo é confirmada pela idéia mesma de Riobaldo o que significa dizer que seu raciocínio, após tudo o que viveu no sertão, acaba por lhe fornecer a resposta final para a existência do diabo e do mal. É a vida no seu devir que conduz o pensamento riobaldiano a encontrar a resposta final? O vivido confirma a idéia inicial? Seu pensamento embora seja dialético no perguntar-responder contínuo, como uma matriz de especulações, por assim dizer, seria conduzido em grande parte pela vida empírica, suas respostas estariam sendo encontradas pela via do vivido, observado, sentido, visto no sertão, na travessia de muitas outras vidas. Nesse sentido, há várias passagens em que se pode inferir e até mesmo confirmar o empírico que subjaz ao movimento dialético do raciocínio de Riobaldo e que ao longo do texto terá como conseqüência a saída de uma especulação metafísica para a ordem ética do ser humano. Aqui lembramos de uma célebre afirmação de Riobaldo o real não está nem na saída nem na chegada ele se dispõe para a gente é no meio da travessia, nosso pressuposto encontra passagem nesta bela frase que Guimarães Rosa coloca nos lábios de Riobaldo, como tentaremos mostrar a seguir. Passagens onde Riobaldo é nitidamente «empírico»:

«[...] uma coisa é pôr idéias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas, de carne e sangue, de mil-e-tantas misérias» (p. 31) «Os lugares sempre estão aí em si, para confirmar» (p. 43) «Para que referir tudo no narrar, por menos e menor? [...] mesmo o que estou contando, depois é que eu pude reunir relembrado [...] a gente sente mais é o que o corpo a próprio é: coração bem batendo. Do que o que: o real roda e põe diante» (p. 154) «E estou contando não é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente. Queria entender do medo e da coragem, e da gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder. O que induz a gente para más ações estranhas, é que a gente está pertinho do que é nosso, por direito, e não sabe, não sabe, não sabe!» (p. 116) «[...]sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar. Viver é muito perigoso...» (p. 41) «Aquilo fosse sonho mero, então só sonho; ou, não fosse então eu carecia de uma realidade no real, sem divago!» (p. 257) «Adianta querer saber muita coisa? O senhor sabia, lá para cima — me disseram. Mas, de repente, chegou neste sertão, viu tudo diverso diferente, o que nunca tinha visto. Sabença aprendida não adiantou para nada...Serviu algum?» (p. 276) «O que sinto, e esforço em dizer ao senhor, repondo minhas lembranças, não consigo; por tanto é que me refiro tudo nestas fantasias. Mas eu estava dormindo era reconfirmar minha sorte. Hoje, sei» (p. 304) «Vida é noção que a gente completa seguida assim, mas só por lei duma idéia falsa. Cada dia é um dia» (p. 416) « O mal e o bem, estão é em quem faz; não é no efeito que dão» (p. 113) «Ser ruim, sempre, às vezes é custoso, carece de perversos exercícios de experiência. Mas, com o tempo, todo o mundo envenenava de juízo. Eu tinha receio de que me achassem de coração mole, soubessem que eu não era feita para aquela influição.» (p. 186) Deixamos o pressuposto de que Riobaldo em seu passado de jagunço-filósofo parece se aproximar muito mais do empirismo do que de qualquer outra filosofia, pois a existência do diabo acaba se tornando uma metáfora para a natureza humana[13] em uma de suas faces. As passagens citadas, em especial a última, vêm ao encontro de nossa hipótese porque até mesmo para «ser ruim» seriam necessários constantes e «perversos exercícios de experiência». Assim, se as divagações de nosso filósofo do sertão concluem que o diabo não existe[14], por outro lado concluem: o mal existe e a questão inicialmente metafísica encontra a resposta tão procurada na maldade e na miséria humana[15]. Talvez, este outro lado do que seria a ética, seja a vereda de cada travessia humana, pois Riobaldo descobre pela vida dada na experiência que o mal não é excluído do mundo pela não-existência de Lúcifer, o mal se torna possibilidade para a existência de cada homem como uma das «veredas»[16] da travessia de cada instante do existir, pois minha idéia confirmou: que o diabo não há! É o que eu digo, se for [...] existe o homem humano. Travessia[17] Com estas palavras nosso querido filósofo do sertão termina de contar sua vida e dá por encerrada uma pergunta que contendo outras inúmeras desloca-se da esfera transcendente para a esfera ética do agir humano, o mal e o bem, estão é em quem faz; não é no efeito que dão. (p.113). Quanto à célebre frase o real não está nem na saída nem na chegada ele se dispõe para a gente é no meio da travessia, numa analogia de idéias e diante do exposto, diríamos, o real tão buscado foi encontrado pela travessia da existência mesma de Riobaldo em meio a sua vida no sertão, foi na sua travessia singular de ser humano diante de um modo de ser acompanhado do valor de um instante seguido pelo valor de outro instante, onde cada dia é um dia no sertão, que deixa a ele seu mais sábio ensinamento, É [foi] o que a vida me ensinou (p.65) Quem sabe, este ensinamento seja o querer que o leva a falar sobre o passado como se fosse presente, pois é preciso se abstrair do próprio presente quando se fala sobre o passado para trazê-lo de volta mais uma vez, e, igualmente, abstrair-se do próprio passado, também em parte, para senti-lo vivo novamente. Neste movimento de ir e vir, Riobaldo seria um autêntico dialético, pois vive em parte[18] um todo que nunca sendo todo só o pode ser vivido em parte, vive o todo em parte, o instante, que nunca sendo só parte só o pode ser vivido no todo, são os fragmentos em memórias a sugerir: viver em lembranças é muito muito perigoso, pois a gente só sabe bem aquilo que a gente não entende. (p. 394)

[1] O que segue neste texto é apenas um possível caminho de interpretação, o caminho das minhas sensações, imaginação, pensamentos, dados por uma primeira leitura da obra, não tenho a pretensão de encontrar alguma verdade riobaldiana, apenas seguir as águas de um rio que não pode nunca parar, não é para isto que as palavras servem? [2] Este ensaio foi escrito para o curso Do Pós-Graduação em Literatura, UFSC, ministrado pelo Professor Doutor Alckmar Luiz dos Santo,2 semestre 2005. Resumo do curso: Teoria, para quê teoria?! Metodologia e retórica da leitura crítica. Pontos: discutir a posição do leitor diante do texto, a partir da obra de João Guimarães Rosa. Ao oscilar entre o imediato da leitura e um possível recuo reflexivo, nos vemos premidos entre sensibilidade e organização de idéias, entre intuição e construção de uma visada crítica. Daí a necessidade ingente e urgente de realizarmos uma leitura de nossa própria leitura, uma crítica da crítica, como diz Tzvetan Todorov. Ora, muito freqüentemente, essa metaleitura esquece a obra literária que lhe deu ocasião e motivo, resvala para um fechamento da leitura em que se sai da fabulação do literário, para se cair na fetichização de conceitos teóricos e de métodos críticos, quando não na mera exploração temática da obra ou do autor em foco. Uma tal metaleitura exibe a ilusão de uma pretensa autonomia: é como se o mero esforço de pensar teoricamente substituísse com folga o trabalho de ler; como se a pluralidade do texto literário pudesse ser trocada com vantagens pela mise en abîme de jogos teóricos vazios. Ao se propor um campo teórico que toma a cena da leitura, que se põe no lugar do texto literário, não é a leitura crítica que passa a ser também literatura, mas é a própria literatura que sai do espaço da leitura. É claro que não se defende aqui esse engodo de crer numa postura ingênua do leitor, desprovida de reflexões, de exercícios conceituais, das metaleituras a que nos referimos acima. Porém, há que se reconhecer que, entre um extremo e outro, há todo um universo de possibilidades a serem exploradas![...] Qual seria o papel de uma teoria nessa rearticulação incessante do literário que é a leitura? Para quê, afinal, uma teoria do literário? Cf. www.cce.ufsc.br/~alckmar/ [3] Rosa, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. [4] Todas as citações de Grande Sertão: Veredas inseridas ao longo do texto foram retiradas da edição da Nova Fronteira, referenciaremos somente a página que localiza a citação. [5] Platão. Sofista. Passagem 263 e — [6] Cf. Platão..., op.cit., 263 — 264 a — [7] Bergson, H. Matéria e Memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes, 1999. Cf. p 86. [8] A aproximação filosófica com o empirismo associa-se muito mais ao tempo dado já nas recordações do que propriamente ao tempo dado durante às lembranças representadas, em outras palavras, haveria um plano de frente que é o da narrativa da vida de Riobaldo para o interlocutor, presente portanto, e um plano dado em segundo lugar que é a estória contada dentro do monólogo, porém, o plano dado em segundo lugar é o centro da obra e, no entanto, não mais existe além das representações em lembranças do personagem-narrador. [9] Não tenho como explicar isso neste momento, não sei se existe, se é possível, penso que sim, acabei de ter uma sensação e a defini assim: dialética da percepção. Estendi a Riobaldo por estar imersa nele nestes dias, mas sinto que devo a ele tal sensação-intuitiva, e se existe cartesianamente em algum filósofo, agradeço por tê-la encontrado via sensação e não via razão, muito provavelmente porque cheguei a ela através de vias literárias. [10] Em outra passagem uma referência similar: «Ah, tem uma repetição, que sempre outras vezes em minha vida acontece. Eu atravesso as coisas — e no meio da travessia não vejo! — só estava era entretido na idéia dos lugares de saída e de chegada [...] Viver nem não é muito perigoso?» (GS: V: p.51) [11] O termo paradoxo se justifica pelos diferentes paradigmas filosóficos que vão surgindo no decorrer da obra no modo de ser riobaldiano e que são por sua vez distintos e remeteriam a uma contradição do próprio raciocínio riobaldiano, pois ora ele se aproxima do empirismo ora se aproxima do idealismo ora se aproxima da dialética platônica, do tempo irrecuperável bergsoniano, do ceticismo e até mesmo da recorrência aristotélica de predicar algo ao ser na tentativa de dizer o que «é» o ser. [12] Para quem leu com seriedade a obra maior de Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas: a narrativa do personagem-narrador, Riobaldo, é para mim claramente um tratado da ética humana, denso, profundo, abordando várias partes da natureza do ser humano, o qual vai desvelando aos poucos um personagem_ talvez o próprio Rosa_ de rara beleza existencial, de raras sensibilidades ao se propor, solitariamente, grandes questões humanas, ao dar-se, solitariamente, as respostas feitas no silêncio e na vida do sertão. Mas, o sertão é do tamanho do mundo, esta frase de Riobaldo contém o significado de Vida: o sertão é o mundo todo, é o momento, o medo, a angústia, a proximidade da morte, o sentido não-compreendido, as relações humanas, o amor, a amizade, a fidelidade, a traição, o abandono, a esperança, a Vida. A análise que Riobaldo faz constantemente durante a narrativa é um exemplo de grande profundidade do « olhar » de um ser humano para outro ser humano. Que Riobaldo nos sirva, a todos, de exemplo da rara beleza de alma que um ser humano pode chegar a se tornar, a viver em sua passagem por « este mesmo e velho chão ». [13] «Esses não vieram do inferno? Saudações!» (p. 65) Riobaldo se refere às atitudes dos jagunços, atitudes nada nobres. [14]«A reza serve para sarar da loucura» (p. 32) de onde poderíamos deduzir que reza não serve para proteger contra satanás. [15] De outra forma: a natureza humana não é só objeto de especulações morais e filosóficas durante a narrativa de Riobaldo, é ela própria quem fornece ao leitor a resposta final sobre a existência do diabo, a obra inicia e termina com a mesma questão respondida finalmente através da natureza humana nada tendo, por fim, qualquer relação com uma ontologia transcendente ou teológica da eterna luta do bem contra o mal e representada por Deus ou por Lúcifer. [16] «O sertão é do tamanho do mundo» (p. 89) «o resto pequeno é vereda» (p. 90) [17] Grifo nosso. [18] Primeiro Soneto Barroco. “O todo sem a parte não é todo, A parte sem o todo não é parte, Mas se a parte o faz todo, sendo parte, Não se diga que é parte, sendo todo.” Gregório de Matos. “Um simples conformar-me a olhos tais/Foi firme e certo intento em não querê-la:/Recusa de ceder ao que — tão bela — /Seria morte em mim, um fim, sem mais./E mais, ainda, a afronta desse viço/Que — tão contrário a mim — se faz arauto/Da dor com que me vejo louco e falto/Da força com que arrosta o fado imigo/Mas, deu-se o renascer (que nem é certa Idéia que de mim se afirme à custa)/E fez de outra fatura o meu olhar-te:/E fez de mim — ruína que antes era —/Um ínfimo infinito: imagem sua,/Ao dar-se em todo inteiro o que era parte.” Luiz dos Santos, Alckmar. Cf. Jornal de Poesia. http://www.jornaldepoesia.jor.br/alckmarsantos.html

(final da primeira parte do ensaio)

Do monólogo-riobaldiano à aproximação bergsoniana

Do monólogo-riobaldiano à aproximação bergsoniana ou Do amor de Riobaldo por Diadorim ao pressuposto da aproximação bergsoniana__sandra adriana fasolo “A verdade que, em minha memória, mesmo, ela tinha aumentado de ser mais linda.[...] Assim é como conto. Antes conto as coisas que formaram passado para mim com mais pertença. Vou lher falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe.” GS:V.
O monólogo, enquanto «tempo riobaldiano presente» da obra, aproxima-se um pouco com Bergson no sentido de que o passado é irrecuperável em sua originalidade do instante vivido, lembrar e falar sobre o passado implica na impossibilidade do «olhar» que precisa se abstrair do instante para voltar-se para aqueles a serem trazidos de volta pela representação do mundo vivido.[1] Para tanto dependem da memória, de como foram representados no passado e de como são representados no presente, no momento em que se fala «sobre». Aqui cabe lembrar uma divagação-afirmativa de Riobaldo, se cada dia é um dia no sertão[2], ao lermos Grande Sertão: Veredas, pensamos, cada instante «falado» pelas recordações da memória de Riobaldo conteria a possibilidade de trazer junto um novo instante[3] a acompanhar a ausência do que um dia foi uma realidade, mais que real em sua originalidade de vida. Não sabemos que «vereda» tomará conta do instante-lembrado e o que será escolhido para «floreá-lo», são as veredas-da-imaginação, veredas-da-percepção, veredas-em-imagens, veredas-em-discursos, veredas-em-diálogos do pensamento que divaga e se move em lembro deslembro. Esta expressão sugere que Riobaldo-Filósofo possui a consciência de que ao lembrar de algo estaria também deslembrando este mesmo algo pelas veredas novas que se apresentam ao pensamento. Ele intui? Ele tem certeza? Desconfia[4] de suas lembranças? O Poeta-Filósofo do sertão tem sua dose de ceticismo, ele diz ao «doutor» que escuta a narrativa de sua vida: O que sinto, e esforço em dizer, repondo minhas lembranças, não consigo; por tanto é que refiro tudo nestas fantasias (vereda 214) estendendo assim a sua desconfiança ao leitor: até que ponto o narrado por Riobaldo foi como teria acontecido? Diz ele em outra passagem, eu estava, com efeito, relatando mediante certos floreados umas passagens de meus tempos, e depois descrevendo, por diversão [...] Aí riam de miséria melhorada (vereda 441) Até que ponto Riobaldo não está a florear sua vida através de lembranças? E se o fez, como ele mesmo parece sugerir em várias passagens, o que numa narrativa tão longa de uma vida tão singular, seria a principal e determinante vereda de seu próprio imaginário-em-lembranças? Do ponto de vista do monólogo[5], ele não poderia recuperar o vivido em sua forma original sem que acrescentasse a ele outros pensamentos decorrentes do devir e que teriam contribuído para que alterasse as lembranças posteriormente sem que pudesse ver onde ou como se deram tais alterações, ainda que sutis; do ponto de vista da vida-recordada, diz nosso Poeta-Filósofo, para que referir tudo no narrar, por menos e menor? [...] mesmo o que estou contando, depois é que eu pude reunir relembrado [...] a gente sente mais é o que o corpo a próprio é: coração bem batendo. Do que o que: o real roda e põe diante (vereda 154)[6] o que de certa forma vai além de um mero ceticismo com o próprio ato de trazer o real-já-vivido de volta ao presente, pois Riobaldo chama a atenção para um valor quase incondicional do viver, o valor do instante real[7], em suas palavras, do coração bem batendo. Talvez o instante mais real vivido por ele tivesse sido mesmo o instante do amor, talvez ele o saiba, talvez por isso desconfie de suas memórias, pois o valor maior da vida de Riobaldo vem associado o tempo todo ao amor por Diadorim[8]. Amor sentido e não-vivido e ao mesmo tempo «vivido», amor de coração bem batendo, então para que referir tudo no narrar, por menos e menor? Isto nos levaria a imaginar um Riobaldo cético, mas, seria precipitado afirmar que «é» a origem do ceticismo em Riobaldo que o conduz por veredas do lembro deslembro acabando por incluir até mesmo a dimensão de seu amor por Diadorim. Isto é, poderíamos pensar que a dose cética no modo de ser riobaldiano conduzisse tal modo de ser para outras veredas de si próprio como, em seu exemplo maior, o amor à Diadorim, por outro lado, inversamente, poderíamos pressupor que «é» a condição de impossibilidade do amor sentido que o conduz à uma condição de possibilidade do ceticismo de suas próprias lembranças[9]. É o amor tão profundo, e sentido por ele nos momentos mais diversos da vida no sertão, que reafirma a idéia da impossibilidade de trazer de volta o que se viveu, pois as lembranças não têm a força necessária para trazer de volta a vida em seu estado absoluto, assim como a vida é definida por Bergson, sequer um instante vivido. O fato de que o lembro já traz em si o deslembro torna a ausência lembrada de Diadorim o deslembro de sua própria presença. O recordar não passaria, assim, de uma auto-confissão melancólica que reafirma a ausência do passado onde nada fica de fora a não ser a memória de Riobaldo-abstrativo que perdido em recordações se percebe na fragilidade de si mesmo: recorda e, no entanto, naquilo que deveria estar a presença daquilo mesmo que fala pelas lembranças, o que encontra? Riobaldo poderia responder aqui: encontro o absurdo[10], nas minhas lembranças encontro a ausência original do instante vivido, em minhas lembranças encontro e não encontro quem amei, pois o real não mais presente depende unicamente de minha memória e de como ela está a se mover, é, de fato, minha confissão melancólica da total impossibilidade de viver novamente um átimo de segundo que fosse, e eu sei, que tudo isso ainda assim é bonito porque o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas — mas que elas estão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou (vereda 39) Mas quando elas não mais estão aqui, quando não podemos mais vê-las em devir, então sobra a presença através de um recordar como um não mais nunca encontrar. A morte de Diadorim não significa a morte do amor de Riobaldo por ela e, contudo, ele o sabe, narrar será sempre por menos e menor do que qualquer instante em que a tivesse amado, como quando el[a] saía, o que ficava mais, na gente, como agrado em lembrança, era a voz, uma voz sem pingo de dúvida, nem tristeza. Uma voz que continuava[11]. (vereda 265) O deslembro seria assim a lucidez mais que presente de tudo aquilo que um Riobaldo invadido pela melancolia viu e amou em Diadorim, como a confirmação da própria ausência do real, do real que roda e põe diante (vereda 154) a presença, na verdade, tão e somente a pura e real ausência. Talvez essa expressão seja um dos pontos mais fortes em nosso Poeta-Filósofo do sertão, pois tudo que está a narrar em vez de ser vida presente é puramente vida vivida, é ausência fenomênica, ausência do outro em si, ausência do movimento de vida que vem de fora, vereda?, restando tão somente a presença do movimento de vida que vem de dentro, travessia?[12] Lembro deslembro diz: a cada vez do lembro haverá o deslembro do vivido em sua originalidade de vida real[13], haverá no lembro a presença pela imagem, haverá no deslembro a ausência do real desta mesma imagem, haverá, quem sabe, a afirmação da não-presença e deve ser por isso que a gente lembra, esta vida é de cabeça-para-baixo, ninguém pode medir suas perdas e colheitas. Mas conto. Conto para mim, conto para o senhor. (vereda 161) Sim, conta para ele mesmo sua perda real e da qual não consegue não lembrar-se[14]. Riobaldo mais que um Filósofo talvez tenha sido um lírico perdido em divagações e imagens, veredas-do-imaginário: A verdade que, em minha memória, mesmo, ela tinha aumentado de ser mais linda.[...] Assim é como conto. Antes conto as coisas que formaram passado para mim com mais pertença. Vou lher falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas — e só essas poucas veredas, veredazinhas. (vereda 116). Riobaldo fala sobre o sertão (a vida), mas diz ainda não saber, ninguém ainda não sabe[15]; em outra passagem: Sertão é isto, o senhor sabe: tudo incerto, tudo certo. (vereda 172) Da incerteza provém alguma certeza da vida que ainda não se sabe, mesmo vida vivida ninguém ainda não sabe, as lembranças pertencem a este não-saber. Riobaldo se pergunta mais adiante: Ah, mas falo falso. O senhor sente? Desmente? Eu desminto. Contar é muito dificultoso. Não pelos anos que já se passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas — de fazer balance, de se remexerem dos lugares. O que eu falei foi exato? Foi. Mas teria sido? Agora, acho que nem não. São tantas horas de pessoas, tantas coisas em tantos tempos, tudo miúdo recruzado[16]. (vereda 200) Assim, se ele está a florear parte de sua existência via recordações, em outra passagem, no que se refere ao instante, Riobaldo parece fazer um caminho inverso dizendo a mesma coisa: para o real os floreados de nada servem, a vida fala por si só, diz ele [...] traição ou maldade. Nas estórias, nos livros, não é desse jeito? A ver, em surpresas constantes, e peripécias, para se contar, é capaz que ficasse muito e mais engraçado. Mas, qual, quando é a gente que está vivendo, no costumeiro real, esses floreados não servem [...], (vereda 177) As lembranças teriam o seu valor maior no «instante» dado num tempo muito mais tarde quando não se está vivendo no costumeiro real de determinado «instante», onde, de um lado, os floreados não servem para o real, de outro, para o passado, permanecerá sempre a dúvida do «foi isso mesmo?», Riobaldo sabe disso, são as veredas do «olhar» da própria representação da memória e ainda que não tenha intenção de florear como saber se houve ou não vontade para tanto?, ele próprio o diz: e de tantas coisas passadas diversas eu inventava lembrança [...] sem nem que fosse por minha própria vontade[17]-[18]. (vereda 440) Nosso postulado parcial e final é de concordância com nosso Poeta-Filósofo de que Assim é a vida. Lembro deslembro (vereda 214) pois se para trás não há paz (vereda 58) considerando que saudade de coração está na primeira vez de tudo, Riobaldo muito mais do que se percebe a princípio é um adepto do bom empirismo, do valor de cada instante do sertão, sertão-mundo-vida, por isso é que a gente sente mais é o que o corpo a próprio é: coração bem batendo. Do que o que: o real roda e põe diante. — Essas são as horas da gente. As outras, de todo tempo, são as horas de todos. — As horas de todo o tempo, como significando lembranças as quais já não são a primeira vez de tudo e muito menos o real, o real que roda e põe diante um dia depois do outro, cada dia do sertão, em contraponto com as horas de todo o tempo, as horas da gente, lembradas em veredas-do-imaginário, veredas-do-divago, veredas-do-pensamento, veredas-do-coração, enfim, todas as veredas de um sertão que é do tamanho de uma única e singular travessia, não só riobaldiana ou diadorina, mas de cada ser humano em imagens de lembro deslembro[19] de seu sertão particular. Assim é a vida?[20] Diríamos que sim, assim é a vida, pois a impossibilidade de recuperar com certeza o real vivido se aproxima de uma dose cética e de um bom empirismo, aquele do valor dos instantes da vida, o significado de sertão-vida-mundo, estaria dado, para Riobaldo, na travessia, na existência mesma, mas porque ele tem este modo de ser predominante? Talvez sua vocação de poeta-filósofo somado a um amor impossível o tenha conduzido por veredas inesperadas de seu sertão, ainda que em lembranças, floreadas ou não. Alguém poderá perguntar, mas onde está o paradoxo se tanto a questão da existência do diabo como o ato de recordar aproximam Riobaldo de um certo empirismo? Diríamos que isto ainda assim é um paradoxo, pois a vida passada de Riobaldo tendo uma valoração do instante contém igualmente uma recorrência de divagações e mesmo durante tais divagos[21] ele sabe que pensar ou lembrar em demasia aquilo que se viveu distorce o instante original vivido; por outro lado, a vida narrada, portanto, tempo presente em que Riobaldo está imerso em atos abstrativos do recordar, não permite que ele deixe de contar sua travessia, tanto a ele como ao doutor, são seus pensamentos ainda uma vez mais reafirmando a vida-em-travessia, é Rio-baldo[22]; baldo: atravessado; rio: águas; Rio-baldo atravessado pelas águas de um rio que não pode nunca parar seu curso. É assim que é a vida: o real não está na saída e nem na chegada ele se dispõe para a gente é no meio da travessia e sendo a vida em seu fluir contínuo a travessia mesma, Riobaldo torna-se o «desvelamento» da alma humana na travessia singular da vida de cada um de nós, universalizada em um personagem torna-se referência de vida ao que atravessa, permeia, sofre, ama, pensa, recorda, vive na «travessia» de uma existência, a minha[23], a sua, quem sabe, de todos, afinal, o sertão é do tamanho do mundo.
[1]Para evocar desse modo o passado, sob forma de imagens, é necessário, todavia, abstrair-se da ação presente, é preciso atribuir valor ao inútil, é preciso querer sonhar, afirma Bergson. Cf. Bergson, Coleção Os Pensadores. p. XII. [2] “Vida” é noção que a gente completa seguida assim, mas só por lei de uma idéia falsa. Cada dia é um dia. (vereda 414) [3] Cf. Introdução à Metafísica de Bergson, colocamos aqui um resumo da idéia que nos interessa e algumas observações: o filósofo afirma a impossibilidade de uma consciência possuir dois momentos idênticos, pois seria uma consciência sem memória e é pela memória que o passado se apresenta, lembrar significa portanto a não repetição absoluta do vivido, lembrar torna-se relativo e sempre relativo em relação a alguma outra coisa, só o viver pode ser absoluto em sua originalidade. [4] Riobaldo desconfia do «lembrar» de sua própria vida narrada ao interlocutor «o senhor doutor» ele intui a impossibilidade de lembrar a originalidade do que se vive, ele desconfia de suas lembranças porque desconfiar é já ser sábio (vereda não-localizada) Essa desconfiança de nosso filósofo do sertão será analisada a partir das passagens citadas, em especial, do lembro deslembro. [5] Lembramos aqui o abordado na primeira parte deste ensaio no que se refere ao «tempo riobaldiano» e suas diferenças que acabam apontando para modos distintos de ser de Riobaldo, mas tendo sempre por perto um apelo aos instantes reais da vida, o valor da própria vida em seu fluir contínuo, em detrimento do lembrar o qual sempre ficará pelas imagens e pela representação em meio a inúmeras outras representações dadas pelos instantes subseqüentes do viver e que no ato mesmo do «lembrar» o tornariam diferente, ainda que minimamente, das imagens do passado. [6] Em outra passagem uma «fala» de Riobaldo semelhante: [...] eu me esquecia de tudo, num espairecer de contentamento, deixava de pensar. [...] Só que coração meu podia mais. O corpo não translada, mas muito sabe, adivinha se não entende. Perto de muita água, tudo é feliz. (cf. vereda 45) [7] Uma das recorrências predominantes na narrativa é esse apelo de Riobaldo aos instantes do viver em várias passagens, talvez a passagem mais forte seja: O sertão é o momento. Sendo o «sertão» o mundo todo, a vida é o momento. [8] Os dois pontos marcantes pelos quais se pode abordar a obra diretamente é a questão da existência do diabo e o amor por Diadorim. [9] O senhor sabe?: não acerto em contar, porque estou remexendo o vivido longe alto, com pouco caroço, querendo esquentar, demear, de feito, meu coração, naquelas lembranças. Ou quero enfiar a idéia, achar o rumozinho forte das coisas, caminho do que houve e do que não houve. Às vezes não é fácil. Fé que não é. (vereda 192) [10]Quando a gente dorme, vira de tudo: vira pedras, vira flor O que sinto, e esforço em dizer ao senhor, repondo minhas lembranças, não consigo; por tanto é que refiro tudo nestas fantasias. Mas eu estava dormindo era para reconfirmar minha sorte. Hoje sei[...] Dormi, nos ventos. Quando acorde, não cri: tudo que é bonito é absurdo. (vereda 304) A lembrança é uma forma de beleza e mistério da vida do ser humano, mas quando se tem a consciência riobaldiana da impossibilidade que lhe fica implícita, este «acordar» vem para mostrar o absurdo de um mundo imerso em representações de imagens e palavras, da vida vivida. [11] É interessante essa passagem sob o ponto de vista de um recordar-presente, pois na obra a passagem se apresenta em tempo riobaldiano como se fosse presente, Riobaldo ainda tem e está na presença viva de Diadorim e ainda assim sua voz remete a uma lembrança, pois instantes após ter estado com ela compara sua voz com um som que continua. As próprias lembranças seriam sons que continuam no pensamento? Recordar parece ser um modo predominante de ser de Riobaldo. [12] A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam. Contar, seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância. (cf. vereda 115) [13] A gente vive repetido. [...] Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia. (vereda 80) de onde se compreende considerando outras passagens da obra que a travessia sendo a vida em seu devir tem o seu real «realíssimo» na vida em si mesma. [14] [...] e de tantas coisas passadas diversas eu inventava lembrança, de fatos esquecidos em muito remoto, neles eu topava outra razão; sem nem que fosse por minha própria vontade. (cf. vereda 440) [15] Para as poucas pessoas que sabem ele associa as veredazinhas, lembramos aqui outra fala: coisa pequena é vereda, de onde deduzimos que quem sabe alguma coisa sobre a vida o sabe superficialmente, sem profundidade. Riobaldo lembra nessa passagem o só sei que nada sei socrático. [16] Em outra passagem: [...] O senhor tolere minhas más devassas no contar. [...] — é que aos poucos vou indo aprendendo a contar corrigido. (vereda 214) [17] Mas o sarro do pensamento alterava as lembranças. (vereda 252) [18] Aquilo fosse sonho mero, então só sonho; ou, não fosse então eu carecia de uma realidade no real, sem divago! (vereda 257) [19] Vejo nestes termos riobaldianos algo similar à representação, esta não está na primeira vez de algo “visto”, mas no pensamento/idéia trazido de volta contínuas vezes deixando o momento original da vida imerso em neblina, uma outra palavra, talvez, para teoria, idéia que vai na mente .Diadorim foi minha neblina. (vereda...) [20] Uma analogia rápida entre a obra GS: V e o objetivo do curso ministrado pelo Professor Alckmar no que se refere a questão da teoria: Quanto a este valor da travessia sem que seja uma travessia-com-idéia-que-vai-na-mente [o teorizar] o valor dos instantes da travessia sendo a vida no real, aproxima a teoria com o deslembro, ambos lembram desvio de vida-vivida, como a recordação em Bergson ou o tempo perdido em Proust, o deslembro é um efeito do lembro riobaldiano, o lembro é um efeito de momentos vividos, mas já pertencentes à finitude da realidade, porém não às idéias continuadas na mente. Como se houvesse um morrer infinito da vida que vem pelas idéias do passado, é sempre aquele julgar defeituoso o lembrar da própria vida. O ponto decisivo à profundidade da vida em sua simplicidade está na travessia. É o sertão, sertão, o momento. O momento tem seu valor mais forte antes de qualquer possibilidade de lembro deslembro. Por isso, viver é perigoso, os passos dados para trás [o lembro e o deslembro do pensar em forma de recordação] tornam a existência o desvio dentro dela mesma em sua travessia continua. Este é o viver mais perigoso: do pensar, das abstrações, do viver imerso em teorias. É o efeito do ponto difuso do pensamento, de idéia que vai na mente, theoria, outro nome para lembro deslembro, qualquer que seja, com a possibilidade de desviar o ver do real durante a travessia. Travessia: o instante. Assim é a vida? Não, assim deveria ser a vida também em meio ao teorizar, mas a impossibilidade de se viver com profundidade esse paradoxo da existência impõe uma escolha a todo instante. Viver é muito muito perigoso mesmo. Ainda bem que Riobaldo era o único filósofo no sertão e não era à toa que havia nele medo dos seres humanos. [21] Divago distorce a vida. (vereda... ) [22] Informação fornecida pelo Professor Alckmar durante explicações referentes aos neologismos predominantes na obra de Guimarães Rosa. [23] Gostaria de finalizar os comentários das notas de rodapé dizendo que ao final deste texto «saio» com uma sensação-paradoxal-riobaldiana. Riobaldo não sendo real mas sendo sentido como se fosse deixa um paradoxo quanto aos instantes em que este texto foi sendo escrito: o que ficará para mim com o tempo, será com certeza a imagem do próprio Riobaldo tal a vida que encontrei em suas divagações e talvez só uma pessoa que tenha tido uma vida enriquecida pela vida em si, pelos instantes do real, é que pudesse conduzir uma travessia em lembranças ou não-lembranças, como o fez Rosa de forma tão comovente desvelando tanto encanto em um único personagem. Não conheci o insubstituível modo de ser riobaldiano pela vida real, deu-se, é claro pela leitura da obra, ler é essencialmente abstrato, mas, o que ficará com mais profundidade será sua imagem de filósofo, de poeta, de ser humano imerso em grandes questões éticas. Riobaldo foi para mim mais que «real» e talvez esta sensação paradoxal só faça sentido para quem se encantou com Grande Sertão: Veredas.