sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Do monólogo-riobaldiano à aproximação bergsoniana

Do monólogo-riobaldiano à aproximação bergsoniana ou Do amor de Riobaldo por Diadorim ao pressuposto da aproximação bergsoniana__sandra adriana fasolo “A verdade que, em minha memória, mesmo, ela tinha aumentado de ser mais linda.[...] Assim é como conto. Antes conto as coisas que formaram passado para mim com mais pertença. Vou lher falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe.” GS:V.
O monólogo, enquanto «tempo riobaldiano presente» da obra, aproxima-se um pouco com Bergson no sentido de que o passado é irrecuperável em sua originalidade do instante vivido, lembrar e falar sobre o passado implica na impossibilidade do «olhar» que precisa se abstrair do instante para voltar-se para aqueles a serem trazidos de volta pela representação do mundo vivido.[1] Para tanto dependem da memória, de como foram representados no passado e de como são representados no presente, no momento em que se fala «sobre». Aqui cabe lembrar uma divagação-afirmativa de Riobaldo, se cada dia é um dia no sertão[2], ao lermos Grande Sertão: Veredas, pensamos, cada instante «falado» pelas recordações da memória de Riobaldo conteria a possibilidade de trazer junto um novo instante[3] a acompanhar a ausência do que um dia foi uma realidade, mais que real em sua originalidade de vida. Não sabemos que «vereda» tomará conta do instante-lembrado e o que será escolhido para «floreá-lo», são as veredas-da-imaginação, veredas-da-percepção, veredas-em-imagens, veredas-em-discursos, veredas-em-diálogos do pensamento que divaga e se move em lembro deslembro. Esta expressão sugere que Riobaldo-Filósofo possui a consciência de que ao lembrar de algo estaria também deslembrando este mesmo algo pelas veredas novas que se apresentam ao pensamento. Ele intui? Ele tem certeza? Desconfia[4] de suas lembranças? O Poeta-Filósofo do sertão tem sua dose de ceticismo, ele diz ao «doutor» que escuta a narrativa de sua vida: O que sinto, e esforço em dizer, repondo minhas lembranças, não consigo; por tanto é que refiro tudo nestas fantasias (vereda 214) estendendo assim a sua desconfiança ao leitor: até que ponto o narrado por Riobaldo foi como teria acontecido? Diz ele em outra passagem, eu estava, com efeito, relatando mediante certos floreados umas passagens de meus tempos, e depois descrevendo, por diversão [...] Aí riam de miséria melhorada (vereda 441) Até que ponto Riobaldo não está a florear sua vida através de lembranças? E se o fez, como ele mesmo parece sugerir em várias passagens, o que numa narrativa tão longa de uma vida tão singular, seria a principal e determinante vereda de seu próprio imaginário-em-lembranças? Do ponto de vista do monólogo[5], ele não poderia recuperar o vivido em sua forma original sem que acrescentasse a ele outros pensamentos decorrentes do devir e que teriam contribuído para que alterasse as lembranças posteriormente sem que pudesse ver onde ou como se deram tais alterações, ainda que sutis; do ponto de vista da vida-recordada, diz nosso Poeta-Filósofo, para que referir tudo no narrar, por menos e menor? [...] mesmo o que estou contando, depois é que eu pude reunir relembrado [...] a gente sente mais é o que o corpo a próprio é: coração bem batendo. Do que o que: o real roda e põe diante (vereda 154)[6] o que de certa forma vai além de um mero ceticismo com o próprio ato de trazer o real-já-vivido de volta ao presente, pois Riobaldo chama a atenção para um valor quase incondicional do viver, o valor do instante real[7], em suas palavras, do coração bem batendo. Talvez o instante mais real vivido por ele tivesse sido mesmo o instante do amor, talvez ele o saiba, talvez por isso desconfie de suas memórias, pois o valor maior da vida de Riobaldo vem associado o tempo todo ao amor por Diadorim[8]. Amor sentido e não-vivido e ao mesmo tempo «vivido», amor de coração bem batendo, então para que referir tudo no narrar, por menos e menor? Isto nos levaria a imaginar um Riobaldo cético, mas, seria precipitado afirmar que «é» a origem do ceticismo em Riobaldo que o conduz por veredas do lembro deslembro acabando por incluir até mesmo a dimensão de seu amor por Diadorim. Isto é, poderíamos pensar que a dose cética no modo de ser riobaldiano conduzisse tal modo de ser para outras veredas de si próprio como, em seu exemplo maior, o amor à Diadorim, por outro lado, inversamente, poderíamos pressupor que «é» a condição de impossibilidade do amor sentido que o conduz à uma condição de possibilidade do ceticismo de suas próprias lembranças[9]. É o amor tão profundo, e sentido por ele nos momentos mais diversos da vida no sertão, que reafirma a idéia da impossibilidade de trazer de volta o que se viveu, pois as lembranças não têm a força necessária para trazer de volta a vida em seu estado absoluto, assim como a vida é definida por Bergson, sequer um instante vivido. O fato de que o lembro já traz em si o deslembro torna a ausência lembrada de Diadorim o deslembro de sua própria presença. O recordar não passaria, assim, de uma auto-confissão melancólica que reafirma a ausência do passado onde nada fica de fora a não ser a memória de Riobaldo-abstrativo que perdido em recordações se percebe na fragilidade de si mesmo: recorda e, no entanto, naquilo que deveria estar a presença daquilo mesmo que fala pelas lembranças, o que encontra? Riobaldo poderia responder aqui: encontro o absurdo[10], nas minhas lembranças encontro a ausência original do instante vivido, em minhas lembranças encontro e não encontro quem amei, pois o real não mais presente depende unicamente de minha memória e de como ela está a se mover, é, de fato, minha confissão melancólica da total impossibilidade de viver novamente um átimo de segundo que fosse, e eu sei, que tudo isso ainda assim é bonito porque o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas — mas que elas estão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou (vereda 39) Mas quando elas não mais estão aqui, quando não podemos mais vê-las em devir, então sobra a presença através de um recordar como um não mais nunca encontrar. A morte de Diadorim não significa a morte do amor de Riobaldo por ela e, contudo, ele o sabe, narrar será sempre por menos e menor do que qualquer instante em que a tivesse amado, como quando el[a] saía, o que ficava mais, na gente, como agrado em lembrança, era a voz, uma voz sem pingo de dúvida, nem tristeza. Uma voz que continuava[11]. (vereda 265) O deslembro seria assim a lucidez mais que presente de tudo aquilo que um Riobaldo invadido pela melancolia viu e amou em Diadorim, como a confirmação da própria ausência do real, do real que roda e põe diante (vereda 154) a presença, na verdade, tão e somente a pura e real ausência. Talvez essa expressão seja um dos pontos mais fortes em nosso Poeta-Filósofo do sertão, pois tudo que está a narrar em vez de ser vida presente é puramente vida vivida, é ausência fenomênica, ausência do outro em si, ausência do movimento de vida que vem de fora, vereda?, restando tão somente a presença do movimento de vida que vem de dentro, travessia?[12] Lembro deslembro diz: a cada vez do lembro haverá o deslembro do vivido em sua originalidade de vida real[13], haverá no lembro a presença pela imagem, haverá no deslembro a ausência do real desta mesma imagem, haverá, quem sabe, a afirmação da não-presença e deve ser por isso que a gente lembra, esta vida é de cabeça-para-baixo, ninguém pode medir suas perdas e colheitas. Mas conto. Conto para mim, conto para o senhor. (vereda 161) Sim, conta para ele mesmo sua perda real e da qual não consegue não lembrar-se[14]. Riobaldo mais que um Filósofo talvez tenha sido um lírico perdido em divagações e imagens, veredas-do-imaginário: A verdade que, em minha memória, mesmo, ela tinha aumentado de ser mais linda.[...] Assim é como conto. Antes conto as coisas que formaram passado para mim com mais pertença. Vou lher falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas — e só essas poucas veredas, veredazinhas. (vereda 116). Riobaldo fala sobre o sertão (a vida), mas diz ainda não saber, ninguém ainda não sabe[15]; em outra passagem: Sertão é isto, o senhor sabe: tudo incerto, tudo certo. (vereda 172) Da incerteza provém alguma certeza da vida que ainda não se sabe, mesmo vida vivida ninguém ainda não sabe, as lembranças pertencem a este não-saber. Riobaldo se pergunta mais adiante: Ah, mas falo falso. O senhor sente? Desmente? Eu desminto. Contar é muito dificultoso. Não pelos anos que já se passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas — de fazer balance, de se remexerem dos lugares. O que eu falei foi exato? Foi. Mas teria sido? Agora, acho que nem não. São tantas horas de pessoas, tantas coisas em tantos tempos, tudo miúdo recruzado[16]. (vereda 200) Assim, se ele está a florear parte de sua existência via recordações, em outra passagem, no que se refere ao instante, Riobaldo parece fazer um caminho inverso dizendo a mesma coisa: para o real os floreados de nada servem, a vida fala por si só, diz ele [...] traição ou maldade. Nas estórias, nos livros, não é desse jeito? A ver, em surpresas constantes, e peripécias, para se contar, é capaz que ficasse muito e mais engraçado. Mas, qual, quando é a gente que está vivendo, no costumeiro real, esses floreados não servem [...], (vereda 177) As lembranças teriam o seu valor maior no «instante» dado num tempo muito mais tarde quando não se está vivendo no costumeiro real de determinado «instante», onde, de um lado, os floreados não servem para o real, de outro, para o passado, permanecerá sempre a dúvida do «foi isso mesmo?», Riobaldo sabe disso, são as veredas do «olhar» da própria representação da memória e ainda que não tenha intenção de florear como saber se houve ou não vontade para tanto?, ele próprio o diz: e de tantas coisas passadas diversas eu inventava lembrança [...] sem nem que fosse por minha própria vontade[17]-[18]. (vereda 440) Nosso postulado parcial e final é de concordância com nosso Poeta-Filósofo de que Assim é a vida. Lembro deslembro (vereda 214) pois se para trás não há paz (vereda 58) considerando que saudade de coração está na primeira vez de tudo, Riobaldo muito mais do que se percebe a princípio é um adepto do bom empirismo, do valor de cada instante do sertão, sertão-mundo-vida, por isso é que a gente sente mais é o que o corpo a próprio é: coração bem batendo. Do que o que: o real roda e põe diante. — Essas são as horas da gente. As outras, de todo tempo, são as horas de todos. — As horas de todo o tempo, como significando lembranças as quais já não são a primeira vez de tudo e muito menos o real, o real que roda e põe diante um dia depois do outro, cada dia do sertão, em contraponto com as horas de todo o tempo, as horas da gente, lembradas em veredas-do-imaginário, veredas-do-divago, veredas-do-pensamento, veredas-do-coração, enfim, todas as veredas de um sertão que é do tamanho de uma única e singular travessia, não só riobaldiana ou diadorina, mas de cada ser humano em imagens de lembro deslembro[19] de seu sertão particular. Assim é a vida?[20] Diríamos que sim, assim é a vida, pois a impossibilidade de recuperar com certeza o real vivido se aproxima de uma dose cética e de um bom empirismo, aquele do valor dos instantes da vida, o significado de sertão-vida-mundo, estaria dado, para Riobaldo, na travessia, na existência mesma, mas porque ele tem este modo de ser predominante? Talvez sua vocação de poeta-filósofo somado a um amor impossível o tenha conduzido por veredas inesperadas de seu sertão, ainda que em lembranças, floreadas ou não. Alguém poderá perguntar, mas onde está o paradoxo se tanto a questão da existência do diabo como o ato de recordar aproximam Riobaldo de um certo empirismo? Diríamos que isto ainda assim é um paradoxo, pois a vida passada de Riobaldo tendo uma valoração do instante contém igualmente uma recorrência de divagações e mesmo durante tais divagos[21] ele sabe que pensar ou lembrar em demasia aquilo que se viveu distorce o instante original vivido; por outro lado, a vida narrada, portanto, tempo presente em que Riobaldo está imerso em atos abstrativos do recordar, não permite que ele deixe de contar sua travessia, tanto a ele como ao doutor, são seus pensamentos ainda uma vez mais reafirmando a vida-em-travessia, é Rio-baldo[22]; baldo: atravessado; rio: águas; Rio-baldo atravessado pelas águas de um rio que não pode nunca parar seu curso. É assim que é a vida: o real não está na saída e nem na chegada ele se dispõe para a gente é no meio da travessia e sendo a vida em seu fluir contínuo a travessia mesma, Riobaldo torna-se o «desvelamento» da alma humana na travessia singular da vida de cada um de nós, universalizada em um personagem torna-se referência de vida ao que atravessa, permeia, sofre, ama, pensa, recorda, vive na «travessia» de uma existência, a minha[23], a sua, quem sabe, de todos, afinal, o sertão é do tamanho do mundo.
[1]Para evocar desse modo o passado, sob forma de imagens, é necessário, todavia, abstrair-se da ação presente, é preciso atribuir valor ao inútil, é preciso querer sonhar, afirma Bergson. Cf. Bergson, Coleção Os Pensadores. p. XII. [2] “Vida” é noção que a gente completa seguida assim, mas só por lei de uma idéia falsa. Cada dia é um dia. (vereda 414) [3] Cf. Introdução à Metafísica de Bergson, colocamos aqui um resumo da idéia que nos interessa e algumas observações: o filósofo afirma a impossibilidade de uma consciência possuir dois momentos idênticos, pois seria uma consciência sem memória e é pela memória que o passado se apresenta, lembrar significa portanto a não repetição absoluta do vivido, lembrar torna-se relativo e sempre relativo em relação a alguma outra coisa, só o viver pode ser absoluto em sua originalidade. [4] Riobaldo desconfia do «lembrar» de sua própria vida narrada ao interlocutor «o senhor doutor» ele intui a impossibilidade de lembrar a originalidade do que se vive, ele desconfia de suas lembranças porque desconfiar é já ser sábio (vereda não-localizada) Essa desconfiança de nosso filósofo do sertão será analisada a partir das passagens citadas, em especial, do lembro deslembro. [5] Lembramos aqui o abordado na primeira parte deste ensaio no que se refere ao «tempo riobaldiano» e suas diferenças que acabam apontando para modos distintos de ser de Riobaldo, mas tendo sempre por perto um apelo aos instantes reais da vida, o valor da própria vida em seu fluir contínuo, em detrimento do lembrar o qual sempre ficará pelas imagens e pela representação em meio a inúmeras outras representações dadas pelos instantes subseqüentes do viver e que no ato mesmo do «lembrar» o tornariam diferente, ainda que minimamente, das imagens do passado. [6] Em outra passagem uma «fala» de Riobaldo semelhante: [...] eu me esquecia de tudo, num espairecer de contentamento, deixava de pensar. [...] Só que coração meu podia mais. O corpo não translada, mas muito sabe, adivinha se não entende. Perto de muita água, tudo é feliz. (cf. vereda 45) [7] Uma das recorrências predominantes na narrativa é esse apelo de Riobaldo aos instantes do viver em várias passagens, talvez a passagem mais forte seja: O sertão é o momento. Sendo o «sertão» o mundo todo, a vida é o momento. [8] Os dois pontos marcantes pelos quais se pode abordar a obra diretamente é a questão da existência do diabo e o amor por Diadorim. [9] O senhor sabe?: não acerto em contar, porque estou remexendo o vivido longe alto, com pouco caroço, querendo esquentar, demear, de feito, meu coração, naquelas lembranças. Ou quero enfiar a idéia, achar o rumozinho forte das coisas, caminho do que houve e do que não houve. Às vezes não é fácil. Fé que não é. (vereda 192) [10]Quando a gente dorme, vira de tudo: vira pedras, vira flor O que sinto, e esforço em dizer ao senhor, repondo minhas lembranças, não consigo; por tanto é que refiro tudo nestas fantasias. Mas eu estava dormindo era para reconfirmar minha sorte. Hoje sei[...] Dormi, nos ventos. Quando acorde, não cri: tudo que é bonito é absurdo. (vereda 304) A lembrança é uma forma de beleza e mistério da vida do ser humano, mas quando se tem a consciência riobaldiana da impossibilidade que lhe fica implícita, este «acordar» vem para mostrar o absurdo de um mundo imerso em representações de imagens e palavras, da vida vivida. [11] É interessante essa passagem sob o ponto de vista de um recordar-presente, pois na obra a passagem se apresenta em tempo riobaldiano como se fosse presente, Riobaldo ainda tem e está na presença viva de Diadorim e ainda assim sua voz remete a uma lembrança, pois instantes após ter estado com ela compara sua voz com um som que continua. As próprias lembranças seriam sons que continuam no pensamento? Recordar parece ser um modo predominante de ser de Riobaldo. [12] A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam. Contar, seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância. (cf. vereda 115) [13] A gente vive repetido. [...] Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia. (vereda 80) de onde se compreende considerando outras passagens da obra que a travessia sendo a vida em seu devir tem o seu real «realíssimo» na vida em si mesma. [14] [...] e de tantas coisas passadas diversas eu inventava lembrança, de fatos esquecidos em muito remoto, neles eu topava outra razão; sem nem que fosse por minha própria vontade. (cf. vereda 440) [15] Para as poucas pessoas que sabem ele associa as veredazinhas, lembramos aqui outra fala: coisa pequena é vereda, de onde deduzimos que quem sabe alguma coisa sobre a vida o sabe superficialmente, sem profundidade. Riobaldo lembra nessa passagem o só sei que nada sei socrático. [16] Em outra passagem: [...] O senhor tolere minhas más devassas no contar. [...] — é que aos poucos vou indo aprendendo a contar corrigido. (vereda 214) [17] Mas o sarro do pensamento alterava as lembranças. (vereda 252) [18] Aquilo fosse sonho mero, então só sonho; ou, não fosse então eu carecia de uma realidade no real, sem divago! (vereda 257) [19] Vejo nestes termos riobaldianos algo similar à representação, esta não está na primeira vez de algo “visto”, mas no pensamento/idéia trazido de volta contínuas vezes deixando o momento original da vida imerso em neblina, uma outra palavra, talvez, para teoria, idéia que vai na mente .Diadorim foi minha neblina. (vereda...) [20] Uma analogia rápida entre a obra GS: V e o objetivo do curso ministrado pelo Professor Alckmar no que se refere a questão da teoria: Quanto a este valor da travessia sem que seja uma travessia-com-idéia-que-vai-na-mente [o teorizar] o valor dos instantes da travessia sendo a vida no real, aproxima a teoria com o deslembro, ambos lembram desvio de vida-vivida, como a recordação em Bergson ou o tempo perdido em Proust, o deslembro é um efeito do lembro riobaldiano, o lembro é um efeito de momentos vividos, mas já pertencentes à finitude da realidade, porém não às idéias continuadas na mente. Como se houvesse um morrer infinito da vida que vem pelas idéias do passado, é sempre aquele julgar defeituoso o lembrar da própria vida. O ponto decisivo à profundidade da vida em sua simplicidade está na travessia. É o sertão, sertão, o momento. O momento tem seu valor mais forte antes de qualquer possibilidade de lembro deslembro. Por isso, viver é perigoso, os passos dados para trás [o lembro e o deslembro do pensar em forma de recordação] tornam a existência o desvio dentro dela mesma em sua travessia continua. Este é o viver mais perigoso: do pensar, das abstrações, do viver imerso em teorias. É o efeito do ponto difuso do pensamento, de idéia que vai na mente, theoria, outro nome para lembro deslembro, qualquer que seja, com a possibilidade de desviar o ver do real durante a travessia. Travessia: o instante. Assim é a vida? Não, assim deveria ser a vida também em meio ao teorizar, mas a impossibilidade de se viver com profundidade esse paradoxo da existência impõe uma escolha a todo instante. Viver é muito muito perigoso mesmo. Ainda bem que Riobaldo era o único filósofo no sertão e não era à toa que havia nele medo dos seres humanos. [21] Divago distorce a vida. (vereda... ) [22] Informação fornecida pelo Professor Alckmar durante explicações referentes aos neologismos predominantes na obra de Guimarães Rosa. [23] Gostaria de finalizar os comentários das notas de rodapé dizendo que ao final deste texto «saio» com uma sensação-paradoxal-riobaldiana. Riobaldo não sendo real mas sendo sentido como se fosse deixa um paradoxo quanto aos instantes em que este texto foi sendo escrito: o que ficará para mim com o tempo, será com certeza a imagem do próprio Riobaldo tal a vida que encontrei em suas divagações e talvez só uma pessoa que tenha tido uma vida enriquecida pela vida em si, pelos instantes do real, é que pudesse conduzir uma travessia em lembranças ou não-lembranças, como o fez Rosa de forma tão comovente desvelando tanto encanto em um único personagem. Não conheci o insubstituível modo de ser riobaldiano pela vida real, deu-se, é claro pela leitura da obra, ler é essencialmente abstrato, mas, o que ficará com mais profundidade será sua imagem de filósofo, de poeta, de ser humano imerso em grandes questões éticas. Riobaldo foi para mim mais que «real» e talvez esta sensação paradoxal só faça sentido para quem se encantou com Grande Sertão: Veredas.