sábado, 1 de abril de 2006

O Encanto em Hume & Seu Ponto Cego-Perigoso

‘Sê filósofo, mas em meio de toda a tua filosofia, não te esqueças de ser homem.’ Hume. Das diferentes classes de Filosofia.
Derivações em pensamentos soltos: Heidegger disse: ‘uma coisa é verificar as opiniões dos filósofos e descrevê-las; outra coisa bem diferente é debater com eles aquilo que dizem, do que falam’[1], a partir disso pode-se transpor, uma coisa é ouvir o que os filósofos dizem, outra coisa é observar o que fazem; mas em qualquer interpretação que se possa dar à frase de Heidegger o que está em seu subtexto pode ser visto como uma duplicidade entre o ‘ser filósofo’ e o ‘ser-humano’. Assim, como haveria de se conciliar tal duplicidade, dentro do mesmo ser, sem se cair em contradições? ‘To be or not to be?’ Semelhante à frase de Hume, não esquecer de ser homem soa como um questionamento diante da existência humana do filósofo, deve ele ser coerente em seu agir com aquilo em que acredita, ou em outros termos, como conciliar suas próprias palavras com suas atitudes ao longo da vida? Como ter um discurso filosófico e uma conduta contrária aquilo em que se crê? O princípio de não-contradição de Aristóteles talvez possa ser lembrado nesse sentido: ‘uma coisa não pode ser e não-ser ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto’, assim, um filósofo não pode ser um filósofo e não ser um homem verdadeiramente, visto que talvez viesse a se anular frente a tal contradição imposta dentro de seu próprio ser por ele próprio. É certo que o poder que alguns julgam encontrar na Filosofia possa ser mais prioritário do que qualquer outro princípio ou forma de agir e pensar. Seria possível citar uma série de frases célebres de vários autores, mas fiquemos com Goethe, Rilke e o próprio autor em questão, Hume. Rilke ao responder a um jovem poeta se ele deveria seguir a carreira de escritor, escreveu-lhe as seguintes palavras: ‘ninguém o pode aconselhar ou ajudar, ninguém, não há senão um caminho, procure estar em si mesmo, investigue o motivo que o manda escrever, examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma, confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever?’[2] Nesse caso, o verdadeiro filósofo morreria se lhe fosse vedado viver de acordo com o que pensa? Morreria se vivesse em contradições com o que pensa, sente, diz ou escreve & Vive? Certo é que muitos dirão "Não!", e mais: por que haveria de morrer? Pois, há que confirmar a possibilidade de que o homem consegue ser contraditório, durante boa parte de sua vida, sem, no entanto, precisar negar o princípio de Aristóteles dentro de si próprio, pois mesmo que vivesse de contradição em contradição, ‘viveria’. Mas de que modo viveria este filósofo? Talvez a ignorar o que teria de mais nobre e elevado. E o que poderia ter ou ser mais nobre e elevado num ser humano com pretensões de filósofo? – alguns poderão perguntar – senão o fato de ‘filosofar’? Talvez devesse anteceder a isto a própria existência a ser vivida em conformidade com o que se tem de mais sagrado: o próprio pensar. Lembremos Goethe e sua afirmação tantas vezes repetida: ‘toda teoria, amigo, é cinzenta; mas a árvore dourada da vida é verdejante’[3], que faz alusão à questão de que a busca do saber e, portanto, da Filosofia, ao permitir ao homem ver mais alto e mais longe, não oculta o caminho difícil, lento e solitário que a teoria filosófica pede de forma silenciosa em troca da sabedoria. Quase uma espécie de pacto mefistofélico, onde muito do que queremos ‘ver’ é concedido e, por outro lado, muitas coisas são retiradas da ‘árvore dourada da vida’. Como viver então entre a ‘teoria cinzenta’ e aquilo que é verdadeiramente ‘vida’ nas palavras de Goethe, o simples e puro viver? Como não ser contraditório com duas visões tão opostas entre si? Onde, além disso, muitas vezes, os pensamentos não cabem na realidade cotidiana, nem sequer ‘tocam’ as pessoas mais próximas? Ou que a metafísica não sendo pragmática não ajuda a quem quer que seja a viver melhor? Meras desculpas filosóficas, por excelência? Ou ainda que a Filosofia não encanta a mais ninguém, nem mesmo aos filósofos que se dizem, ainda, ‘amigos da sabedoria’? Aborda-se aqui uma outra questão: quem disse que o filósofo, seja ele um metafísico ou um cético, não deve possuir como nas palavras de Hume ‘delicadeza de imaginação?’ O que poderia ser mais elevado no espírito do homem se não fosse exatamente isso, uma certa dose de delicadeza de imaginação & outras mais e que não pressupõe, como no dizer de Shakespeare, que a consciência, seja ela pensamento, idéia, percepção, um olhar talvez, torne a todos covardes. Tal elevação do ser enquanto ‘delicadeza de espírito’, extensivo às palavras, ao nosso próprio pensar e, também, à ética, não seria o que Hume pede que os filósofos não se esqueçam de ser? Também, uma ética não somente como idéias, mais do que isto, como um sentimento ou uma ‘impressão’ das coisas e do mundo que conduzam o homem a um constante devir. Dentro desse devir tudo pode permitir um acesso a ‘árvore dourada’ ou à ‘teoria cinzenta’, o que importa é que de um modo ou outro, Goethe, Rilke, Hume, despertam a seguinte pergunta: o verdadeiro filósofo morreria, como Sócrates, caso lhe fosse vedado o direito de viver de acordo com aquilo que pensa e acredita? E que assim a ‘delicadeza de imaginação’, quem sabe o mais difícil de ser conciliado com o ‘ser-filósofo', esteja mais próxima da metafísica do que os livros da antiga tradição clássica. Hume, embora empirista, talvez quisesse dizer que tal ‘delicadeza’ seja tão metafísica quanto produzir no filósofo uma verdadeira vontade que não seja simplesmente deixar-se viver, mas de superar-se a si mesmo a cada nova ‘impressão’, de forma a ser filósofo, a ser homem em qualquer instante de sua existência, em qualquer tempo, mesmo em tempos sem tempo como este em que estamos a viver. Enfim, que a ‘delicadeza de imaginação’ não seja somente imaginação e que, também, não se reduza somente a um falar vazio, rodeado de momentos estéreis, como se fosse o mundo sem o qual muitos pensam que não viveriam.

Pensando bem, o empirismo se torna uma elevação ética e tanto no modo de ser em algumas pessoas, entretanto, em outras, pode vir a ser um viver-filosofar muito muito perigoso (Rio_baldo andas por aí?), pois se não posso me apoiar em nenhuma teoria que garanta alguma certeza sobre o instante futuro, a ética, em sua forma teórica, não pode garantir certezas em atitudes para aqueles que passam longe da delicadeza de imaginação. Pois, então, Hume me pareceu, agora, um tanto perigoso, aos extremos: o empirismo é digno de que se beije suas sandálias e, por outro lado, de que as queimemos em praça pública, só depende de quem está a usar as sandálias para as quais estamos, nós, a olhar. Resta uma certeza: para sandálias não-socráticas sobrará sempre a segunda opção. Cruel, de novo? Ainda insisto, mas diante de ... nem tanto, na medida justa e certa, as sandálias eram pequenas e deformadas em meus delicados pés, abandonei-as há tempo. Agora, em meio ao Mar, ando descalça em delírios literos & filosóficos, pois eis que, sinto a delicadeza da imaginação humeana entre minha pele & a areia fina e não menos delicada do Mar, sempre, Mar, Tanto Mar em Chico Buarque & Hume & Por Andam meus Passos de Agora, que não poderia não-sentir a imaginação em delicados & sutis instantes de Vida-Mar-Flores & Uma Percepção Nova que chega a cada dia em Poesia & Imagens Adoráveis.

sANdrA & Os Perigos do Empirismo Em Almas Não-Éticas, teorias empiristas nada podem... mas no seu outro extremo: empirismo & poesia conduzem sempre às águas do Mar.

[1] HEIDEGGER, M. Que é isto, a filosofia? S.Paulo, 1971, p.32. [2] RILKE, R.M. Cartas a um jovem poeta: a canção de amor e de morte do porta-estandarte Cristóvão Rilke. Rio de Janeiro, 1989. P. 22. [3] GOETHE, J. Fausto. Ato II.