quarta-feira, 14 de setembro de 2005

O empírico e o não-empírico na filosofia clínica

Instituto Packter de Porto Alegre
Pós-Graduação em Filosofia Clínica 1º Parte: A Relação entre o Filósofo Clínico e o Partilhante e uma aproximação a partir de Martin Buber 2ª Parte: O não-empírico implícito nas consultas em contraponto com o empírico da interseção entre Filósofo Clínico e Partilhante by Sandra Fasolo Este texto tem o objetivo de refletir sobre a Filosofia Clínica partindo do pensamento do filósofo Martin Buber. Num segundo momento propomos algumas questões para posteriores reflexões na área da Filosofia Clínica, as quais se referem a dois momentos diferenciados ‘ vividos’ em clínica: o empírico e o não-empírico. Para compreendermos de que maneira a Relação entre FC & P se une ao pensamento de Buber, em especial à segunda parte da obra Eu e Tu, recapitulamos aqui os pontos principais: o pensamento buberiano possui como principal característica trazer reflexões sobre a realidade concreta da existência através do próprio logos[1]-[2] tentando ir além de puras abstrações e raciocínios lógicos–filosóficos. O autor insere a filosofia na existência tornando-a uma filosofia da vida que parte do logos não para simplesmente permanecer nele, mas para elevá-lo a um conceito de relação que simboliza e significa o essencial entre os seres humanos. Ora, o essencial entre os seres humanos é a ‘experiência existencial de presença no mundo’, ‘a fonte de seu pensamento é sua vida’. Assim, sendo a questão existencial, por excelência, o sentido da vida humana, indagamos: como chegar ao seu sentido senão pelo logos? Considerando o pressuposto de Buber de que o ponto de partida é o logos? A resposta do filósofo aponta para a possibilidade de chegar a tal sentido através da Filosofia do Diálogo, este (o diálogo) só é possível porque o ser humano sendo racional possui uma linguagem (não só verbal ou lingüística) a qual lhe possibilita estar em relação consigo mesmo e com o outro (s). Percebemos uma ontologia da relação, da palavra como ‘diálogo na atitude existencial do face-a-face’. Na segunda parte da obra, Buber expõe a diferença entre o Eu e as coisas e o Eu-Tu, sendo que as coisas que estão no mundo_ e mesmo aquelas produzidas pelos homens_ constituem-se somente em coisas, portanto, em objetos e como tais são assim vistos pela consciência do Eu (qualquer Eu, qualquer consciência existente). Mas quando essa relação passa para Eu-Tu, a consciência para a qual nos dirigimos, com a qual dialogamos não se converte em puro objeto de nosso pensamento e de nosso agir para com ela, antes pelo contrário, essa relação perpassa o diálogo e se dá no âmbito de uma relação dialógica entre Eu-Tu, não sendo o Outro, de forma alguma, um objeto. Relação esta que não pode ser ‘coisificada’ como as coisas do mundo. Buber insiste muito neste ponto, o Outro não é um objeto, nem nós, que somos então o Tu do Outro, somos coisificados por ele, ambos, Eu-Tu, (o outro em relação ao Eu) estão sempre numa relação e nem mesmo esta é um objeto, pois ela ‘envolve’ a ambos, ela está aí no movimento de existir do Eu-Tu. É nesse existir da relação recíproca do diálogo e de uma compreensão também recíproca entre o Eu e o Outro que surge a autenticidade das relações humanas, pois quando há o diálogo, mas não há comunicação, quando não se estabelece uma relação viva entre as pessoas no seu “face-a-face” o diálogo torna-se inautêntico. Assim, a participação de ambos é o ‘entre-humano’ ou ‘inter-humano’ e é no desenvolvimento dessa esfera que surge o dialógico, por isso a relação em si mesma também não é coisificada, não é um objeto de especulação, antes, é o desenvolvimento da própria existência das pessoas que dialogam numa dimensão recíproca de compreensão dada pelo movimento da existência concreta, do estar-aí e ser-no-mundo. Para Buber, este ser-no-mundo é essencialmente dialógico, é um estar-aí (Da-sein) que envolve sempre o Outro no meu Eu através do logos (em suas múltiplas faces) inserido na existência. Poderíamos dizer, é o ser-aí sendo-no-mundo através de uma filosofia de vida concreta. Na verdade, uma tentativa de grande parte dos filósofos do século XX, “um voltar às coisas mesmas” o que pode ser visto desde Husserl, em sua última fase com o problema do Mundo da Vida, Heidegger e a fenomenologia de Ser e Tempo, Bergson e o Absoluto, Sartre e o existencialismo, Merleau-Ponty, o próprio Buber, etc. A questão do Sujeito-Objeto entre Filósofo Clínico e Partilhante A questão do sujeito-objeto, problema que perpassa quase toda a tradição filosófica, fica também implícita no texto de Buber, o autor procura superá-la, ao menos no que se refere às relações humanas, tendo como base o próprio diálogo entre as pessoas. Diz o filósofo: ‘Levar os homens a descobrirem a realidade vital de suas existências e a abrirem os olhos para a situação concreta que estão vivendo’, e: ‘quem ouve senão para responder’?_pergunta ele. Se nos perguntarmos pela Relação do Filósofo Clínico e Partilhante contrapondo-a com a questão sujeito-objeto, conseqüentemente, as seguintes questões surgem: 1) O Filósofo Clínico é sujeito para si mesmo. 2) O Partilhante é sujeito para si mesmo. 3) Ambos são sujeitos um para o outro. 4) Mas ambos podem vir a ser objetos um para o outro em determinado sentido que não o de coisificação ou de dualismo frente a duas consciências individuais que procuram a esfera dialógica com um determinado objetivo? Se pensarmos na filosofia do diálogo de Buber a resposta será, logicamente, sim para sujeito e não para objeto em ambos os casos, nem FC nem P podem vir a se constituir em objeto em momento algum, pois a relação é o processo pelo qual o diálogo se torna possível, é a própria vida não objetificada, o que vale igualmente para o diálogo, não é objeto para nenhum dos dois, nunca, pois ele se desenvolve justamente na relação entre Filósofo Clínico e Partilhante, no ‘movimento’ da existência de ambos. Entretanto, se derivarmos a questão sujeito-objeto para o sentido de objeto de reflexão da própria consciência que pensa um determinado problema, é possível aceitar o termo ‘objeto’ sem que se recaia em objeto-coisa, mas objeto enquanto algo que remete a outro algo dentro do pensamento. Aqui, podemos falar na existência de si mesmo como objeto do pensamento que recorda, um processo de pensar-recordar o já vivido, ou seja, a relação do sujeito com sua existência já vivida e, por isso, não-mais-empírica do momento recordado-narrado. É o não-empírico implícito nas consultas em contraponto com o empírico da interseção entre Filósofo Clínico e Partilhante. Vejamos um exemplo: K. traz um problema existencial ao FC, o problema X é o “algo” que será pensado, dialogado, lembrado, etc., tanto por K. como pelo FC no decorrrer das consultas. Nem K. nem FC são propriamente objetos, mas o problema X torna-se algo na consciência de ambos e a consciência (ou pensamento, ser, alma, seja lá o nome que resolvermos atribuir ao ato mental) é também individual. Assim, existe um problema X. O que existe? X. A expressão “o quê?” Remete a algo que não é nem K. nem FC, mas fez parte da vida de K. Esse X será ‘objeto’ de diálogo de ambos ainda que durante a esfera dialógica X não seja um objeto. É só porque X é pensado-falado-dialogado que se torna um objeto, não como coisa, mas como “algo” que estará essencialmente ligado ao diálogo e à relação de K. com o FC e vice-versa. Não se trata, portanto, de coisificar o Partilhante, mas de numa relação em que o diálogo é a base do resultado da clínica perceber que X não pertence mais à pessoa, no caso, à K. em sua realidade concreta. Explicamos: quando K. fala sobre X não o está re-vivendo no instante em que fala sobre X, está abstraindo X pelas suas próprias palavras e pensamentos num diálogo compartilhado. X não é vivido nesse momento, ele é transposto para o logos, há, dessa forma, um ato abstrativo de ambas as partes, pois o FC também não “vive” o passado de K. para uma possível compreensão. Apesar dessa relação implicar em uma filosofia do diálogo e numa filosofia que visa ‘explicitar’ o concreto da vida de K., a existência mesma de K., não é vivida dentro da clínica. É um falar, um lembrar, um refletir, um perguntar, um buscar uma resposta e isto implica em algo, este algo perpassa tanto o pensamento de K. como do FC não sendo, no exato instante da clínica, momentos empíricos. Como se ao falar de X o existir ficasse suspenso. Aceitar que no instante em que K. dialoga com o FC o pensamento reflexivo não esteja sobreposto à própria vida de ambos, pois estão ali, falando sobre X sem viver X, é aceitar com lucidez um não-estar-aí temporário para compreender o que estava-aí, o que estará-aí ainda em presença, em existência. Vê-se nessa circunstância um ‘suspender existencial’ da presença do modo-de-ser de sua própria vida concreta em ser-no-mundo em detrimento de um ‘abstrair-se da realidade’, um abstrair-se de ser-aí para desvelar o sentido das questões que levaram K. a procurar o filósofo clínico. É um ser-aí sem sê-lo no que se refere ao movimento da própria existência concreta_ como uma pausa existencial. Fosse diferente, o FC teria que ter compartilhado toda a vida do partilhante em seu fluir concreto e real, mas é exatamente o contrário, o distanciar-se, o abstrair-se, é que pode conduzir o partilhante a repensar sua vida. Não é possível viver e realizar grandes ilações ao mesmo tempo sobre a própria existência. Nesse sentido, o Tempo decorrido numa consulta torna-se como que um suspender de ser-aí para um ser-aí-reflexivo que busca respostas a perguntas e que só podem ser encontradas pelo abstrair-se do já vivido, desse desviar-se do curso normal da vida, desse virar-se temporariamente para o outro lado, o lado que em geral é esquecido porque viver é mais importante que refletir sobre. Mas é só nesse refletir, dobrar-se sobre si mesmo, que pode surgir uma re-significação, no caso, de X para K. A relação do sujeito com sua existência não-empírica: os momentos recordados A vida narrada sendo passado é objeto de reflexão, de linguagem, de diálogo, um acontecimento narrado não é vivido novamente só pelo fato de que está sendo contado ao FC, fenomenologicamente ele já se deu, já é finitude e jamais poderá ser vivido empiricamente uma segunda vez. A memória não é um sinal de reviver empírico, ela nos possibilita um “reviver” no pensamento via recordações, mas nunca do fato em si mesmo. Ainda que tentássemos reproduzi-lo_ e se isso fosse inteiramente possível_ jamais seria igual, pois o Tempo já é um diferencial e só isto basta para tornar qualquer coisa vivida como irrecuperável empiricamente. Logo, o que se passa numa consulta não se passa empiricamente, mas dialogicamente em múltiplas dimensões daquilo que é narrado. O diálogo ‘flutua’ em coisas que não estão sendo vividas naquele instante, dá-se numa esfera do não-vivido. É um instante onde muitas coisas perpassam e, com certeza, é um momento empírico, mas nunca o será do empírico da historicidade. O momento dado é o diálogo e a relação entre o FC & P. Todo o resto se passa num âmbito que envolve relação, diálogo, memória, recordação, linguagem, fatos, tempo, circunstâncias, etc. etc. mas será sempre um falar sobre, um falar de, um repensar, enfim, um aceitar existencial não-mais-empírico. Esse ‘suspender de’ possibilitará ao Partilhante reencontrar-se em seu modo-de-ser singular e único através da reflexão compartilhada, no entanto, somente se houver um diálogo autêntico e recíproco entre o Eu e o Tu de ambos onde juntos se abstrairão de suas vidas concretas para serem, ainda que por pouco tempo, uma espécie de ser-para-o-outro numa relação existencial não-coisificada, mas antes de qualquer coisa, partilhada entre instantes empíricos e instantes não-empíricos. [1] Lembramos que logoV (logos) do grego, possui múltiplos significados: palavra, discurso, expressão, etc. [2]Sob um ponto de vista essencialmente filosófico, Ferrater Mora, ressalta que encontramos exemplos sobre a questão do diálogo em Platão (toda sua obra foi escrita em forma de diálogo e em cada um deles a dialética, ciência suprema, possui distintos caminhos e significados ontológicos-epistêmicos, cf., por exemplo, Crátilo, Sofista, República), Santo Agostinho (De Magistro), Cícero, Galileu, Berkeley, Hume e, evidentemente, em Sócrates (por meio de Platão), também em Plotino ainda que em forma ‘dialogal’ de perguntas e respostas para consigo mesmo. “O diálogo filosófico responde a um modo de pensar essencialmente não-dogmático, portanto, dialeticamente. Por isso, há uma estreita relação entre a estrutura dialógica e estrutura dialética do pensar. (Mora, 727). No Crátilo, Platão diz que ‘aquele que sabe perguntar e responder é o prático ou especialista do diálogo, isto é, o dialético (Crat. 390 C). Assim, o termo diálogo utilizado pelos gregos, embora apresente diferenciais de um filósofo para outro, e mesmo diferenciais para o pensamento de um único filósofo como no caso de Platão, podemos dizer que o ponto em comum é o fato de haver uma linguagem que serve de instrumento para que o pensamento “avance" através de perguntas e respostas, dialeticamente, como Sócrates já fizera e, talvez essa seja a principal razão que conduziu Platão a escrever toda sua obra (com exceção das Cartas) em forma de diálogo. “A filosofia contemporânea ocupou-se muito do problema da comunicação no sentido existencial e do chamado problema do Outro em estreita relação com o ‘diálogo’ ou com a dialética.” CF. Ferrater Mora, Dicionário de Filosofia, v. 1, p. 727.