Discurso do Método
Discours sur le méthode
pour bien conduire sa raison et chercher la vérite dans les sciences
Discurso sobre o Método
Para bem conduzir a razão e procurar a verdade nas ciências
René Descartes_ Cartesius_ 1637
Resenha-comentada com um resumo do texto transposto_ quanto ao foco narrativo_da 1ª para 3ª pessoa. by Sandra Fasolo
A obra foi publicada originalmente em francês, em 1637, pelo filósofo francês Descartes considerado o «pai» da filosofia moderna. Apresenta uma linguagem acessível se comparada às Meditações, pois enquanto esta foi escrita com uma linguagem essencialmente filosófica, o Discurso do Método, como ele mesmo diz no início da primeira parte, é direcionada «a todos os homens de bom senso», isto é, a todos que possuem a faculdade da razão. Sua forma é autobiográfica, o texto foi escrito em primeira pessoa e expõe a formação intelectual do filósofo antes do desenvolvimento do método que, todavia, possui relação direta com a sua busca por um «primeiro princípio» que pudesse ser o alicerce não só da filosofia como também de todas as outras ciências.
Antes de apresentarmos um resumo-comentado, das seis partes que constituem todo o livro, realizamos algumas perguntas que se revelam importantes para a leitura e entendimento do Discurso sobre o Método:
1º Por que Descartes escreve a obra?
2º Para que ele a escreve? Qual a finalidade principal que o filósofo tem em mente?
3º Como o método é apresentado no decorrer das argumentações?
4º O que há de principal em cada Parte da obra que se liga diretamente com a questão do método?
A resposta, à primeira questão, aponta para o próprio título do livro: [...] «para bem conduzir a razão e procurar a verdade nas ciências», pois a partir do título e do subtítulo Descartes introduz as duas principais razões pelas quais ele escreve a obra. Infere-se, portanto, através do título aquilo que conduz a busca do filósofo no Discurso sobre o Método, uma outra busca, anterior à obra, aquela a conduzir ao caminho claro e distinto para a busca da verdade nas ciências_ o que inclui a Filosofia. Fica implícito, além disso, qualquer verdade em qualquer ciência deverá ser buscada pela razão, consciência, mente, ‘subjetividade’, enfim, pelo cogito como Descartes a define.
Mas por que motivo Descartes parte do pressuposto de que a verdade não foi ainda encontrada? É preciso lembrar as circunstâncias do filósofo, sua época, lugar e tempo onde há uma crise no início da modernidade em relação a toda tradição aristotélica-tomista, poder-se-ia dizer, de toda a tradição filosófica que vem desde os gregos, em especial com Platão. O homem não se coloca mais como centro do universo, as certezas e verdades tidas como absolutas, principalmente pelo aristotelismo da idade média, permite ao ceticismo um espaço maior em relação ao conhecimento. Mas Descartes não é um cético porque tem ele uma única certeza, um forte pressuposto como ponto de partida para seu pensamento: existe a verdade, o que se precisa é de um método que possibilite encontrá-la. A dúvida terá um papel fundamental dentro dos argumentos apresentados por ele, no entanto, embora ele afirme ter colocado tudo em «suspenso», ter duvidado de tudo para chegar a uma primeira verdade ou primeiro princípio filosófico não seria sensato dizer que ele duvidou que a verdade pudesse ser encontrada, do contrário, não teria escrito a obra. Ou antes disso, ele tem uma anterioridade quanto ao pressuposto da certeza de que é possível encontrar a verdade: de que esta existe. Assim, embora a dúvida tenha sido um meio pelo qual ele chega ao seu primeiro princípio ele não ‘suspende’ a «verdade» e muito menos «a possibilidade de sua existência», Descartes não submeteu, muito provavelmente, estes dois pressupostos à dúvida enquanto método.
O Discurso servirá então para «bem conduzir a razão, buscar a verdade e para um gradativo aumento do conhecimento no seu grau máximo possível» conforme ele mesmo o diz na parte primeira. Serve também para que ele possa continuar se instruindo, como consta na parte terceira, a qual se pode ler como uma quarta máxima referente à «moral provisória». E, por fim, possibilitar o pensamento claro e distinto, possibilitar o julgar e a distinção entre o verdadeiro e o falso, pois para agir bem é preciso antes julgar bem, o que era de fato um de seus objetivos: «viver sem filosofar é como ter os olhos fechados sem jamais ter feito um esforço por abri-los e o prazer de ver todas as coisas que nossa vista descobre não é comparável àquelas que se encontram pela filosofia; e seu estudo é mais necessário para regular nossos costumes e nos conduzir na vida que o uso de nossos olhos para guiar nossos passos” (Descartes, R. Carta-Prefácio aos Princípios). O questionamento de como o método é elaborado perpassa, em sentidos diferentes, todos os capítulos da obra.
Parte Primeira
Considerações Acerca das Ciências
Descartes inicia falando sobre a capacidade que todo homem tem em julgar e distinguir o verdadeiro do falso e sobre a multiplicidade de opiniões que conduzem a diferentes caminhos do pensamento. Mas, não é suficiente ter um «espírito bom», o essencial é aplicá-lo bem. Esta aplicação implica em um método. Avisa que exporá o seu método, mas que não tem a pretensão de ensiná-lo a ninguém. De fato, se pensarmos no cogito como principal fundamento cartesiano, o sujeito pensante deve orientar-se segundo sua própria razão, em outras palavras, o método implica sobretudo no uso da razão, do cogito, que cada um possui em si mesmo, daí motivo pelo qual Descartes provavelmente não tem a pretensão de ensiná-lo e sim de mostrar o ‘lugar’ que a razão deve ocupar no pensamento de todo aquele que pretende possuir pensamentos «claros e distintos» na busca da verdade.
Quanto à sua formação intelectual ele conclui que se encontra enlaçado em incertezas e dúvidas. A dúvida quanto ao que lhe foi transmitido pela tradição filosófica, como sendo feita de verdades absolutas, não o satisfaz e é exatamente a dúvida que o acompanhará como meio para encontrar a primeira verdade ou fundamento de sua filosofia_ o cogito. O filósofo não elevará a dúvida ao ceticismo de sua época, Descartes não é um cético, pois há aqui dois importantes pressupostos: 1º de que a verdade existe; 2º de que a verdade pode ser encontrada. 3º para isso é necessário um método.
Não despreza tudo que aprendeu em sua formação intelectual, ele exalta a poesia, pela qual se diz um apaixonado, e fornece aproximadamente 12 motivos onde reconhece a importância de tudo que constitui sua formação, isso vai das línguas clássicas, passa pela matemática, geometria, álgebra, história, as fábulas, teologia, filosofia, medicina, jurisprudência, dos bons livros até às ciências mais supersticiosas porque é preciso conhecer até mesmo aquelas coisas que contêm erros e enganos para podermos julgar a falsidade e a verdade. Porém, nada disso é satisfatório. As ciências tiram seus princípios da Filosofia, mas como pôde acontecer isto se a Filosofia não possui um alicerce sólido? Se não encontrou ainda nenhuma verdade sob a qual se possa dizer de forma clara e distinta e com evidência que é uma verdade? Duvida, portanto, do uso do qual as ciências fizeram da própria filosofia.
Assim, a ciência que Descartes vai buscar no método é a de que ele julga encontrar nele mesmo, a substância pensante toma o lugar das ciências por uma única e exclusiva nova ciência: a verdadeira ciência será antes de tudo o próprio pensamento.
Não crer com firmeza em nada que lhe veio pela tradição. Libertar-se dos erros; estudar a si mesmo e utilizar todas as forças de sua mente para escolher o caminho a ser seguido, são outros de seus pressupostos para o caminho principal que virá, no decorrer da obra, a ser o cogito, ou antes de qualquer coisa, a «subjetividade» de cada um.
Parte Segunda
Principais Regras do Método
Realiza analogias_ da arquitetura e das leis de Esparta_ com a própria filosofia para dizer, aquilo que é «construído» por uma única pessoa tende sempre ao mesmo fim diferentemente quando alguma coisa é pensada por várias pessoas, pois os fins serão então diversos, é o que acontece com várias opiniões. O que ele deseja aqui é criticar os alicerces que formam sua crença pela tradição aristotélica-tomista submetendo-os ao crivo da razão para examiná-los. Quer reformular seus próprios pensamentos, construir um alicerce e libertar-se de todas as opiniões.
Uma de suas críticas se estende à lógica formal, pois as deduções da lógica não podem aumentar o conhecimento, apenas podem explicar aquilo que já existe, isto será retomado mais tarde por Kant na Crítica da Razão Pura onde a lógica formal não acrescenta ou possibilita um novo conhecimento, ela apenas explicita aquilo que já se conhece. Discorre ainda sobre a matemática, a álgebra e a geometria, e a partir de princípios retirados dessas ciências estabelece as quatro regras de seu método:
1º Não aceitar como verdadeiro nada que não seja absolutamente claro e distinto, evidente por si mesmo.
2º Dividir as coisas no maior número possível
3º Ordenar os pensamentos indo dos mais simples aos mais complexos.
4º Realizar o maior número de enumerações e revisões possíveis.
Esses quatro itens se constituem como uma cadeia de razão dedutiva do pensamento cartesiano para encontrar apenas uma verdade em cada coisa.
Parte Terceira
Moral Provisória
Enquanto desenvolve seu método, Descartes pensa que precisa de alguns princípios morais que possibilitem a ele continuar se conduzindo na vida até o estabelecimento final do método. Resolve seguir aqueles princípios morais atribuídos às pessoas conhecidas mais sensatas por não agirem com excessos, toma, assim, para si as opiniões dos mais sensatos. Estabelece, a partir disso, três máximas para si próprio: a de seguir as leis e costumes de seu país e a religião; a de manter-se firme e resoluto em qualquer decisão tomada; e a idéia de que nada há que esteja tão inteiramente em nosso poder como os nossos pensamentos. Decide utilizar toda a vida no cultivo de sua razão para o conhecimento da verdade de acordo com o método que prescrevera e ele mesmo. Tais máximas foram baseadas na resolução que firmara de continuar se instruindo e de julgar bem para agir bem o que pressupõe que a ação em termos morais está vinculada ao sujeito pensante no uso da razão e do bem julgar. A definição dada por Cartesius: «moral provisória permanente», deve-se ao fato de que se o conhecimento absoluto não é possível a moral não pode ser provisória enquanto agimos baseados em princípios que a constituem, por isso, também permanente.
Parte Quatro
Razões que Provam a Existência de Deus e da Alma Humana ou Fundamentos da Metafísica
Aqui se encontra o centro filosófico da obra através das razões que provam a existência de Deus e da alma humana ou fundamentos da metafísica, além da Busca pelas bases de um conhecimento confiável. Contém o famoso enunciado «je pense donc je suis».
Como Descartes resolve dedicar-se à busca de verdade ele opta por recusar todas as opiniões incertas e repelir como inteiramente falso tudo aquilo em que pudesse supor a mais ínfima dúvida e verificar se restaria depois algo completamente fora da esfera da dúvida. Fala sobre os sentidos nos enganarem quase sempre. Observa, então, o desejo de considerar tudo como falso o obriga a pensar que ele_ ao pensar_ é alguma coisa, embora o pensado seja falso ele não pode duvidar de que está pensando, não pode duvidar do ato em si, pois mesmo para pensar o falso de seu pensar, pensa o próprio pensamento. Chega, dessa maneira, à verdade primeira: penso, logo existo e que, por ser tão sólida e exata, impossibilita as mais extravagantes suposições dos céticos, nem estes conseguiriam abalá-la. O cogito ergo sum é aceito por Descartes como sendo o primeiro princípio da filosofa que buscava, pois não pode fingir que não existe, não pode duvidar de sua existência.
Meditando, sobre o fato de que estava duvidando, observa que o homem não é perfeito, deve existir algo mais perfeito do que ele mesmo de onde deriva a verdade que a mente descobre. «Era preciso que existisse outro ser mais perfeito de quem eu dependesse e de quem eu tivesse adquirido tudo quanto possuía... do contrário seria eu também infinito, imutável, eterno, onisciente, onipresente, em resumo, teria todas aquelas perfeições que em Deus eu podia notar». Realiza uma dedução lógica sobre a existência de deus:
A natureza inteligente difere da corporal (substância pensante X coisa extensa)
toda composição é prova de dependência
dependência é defeito
se Deus é composto por estas duas naturezas
logo Deus é imperfeito.
Mas isso não pode se dar considerando que Descartes afirma ser o homem um ser imperfeito, logo depende a sua existência de Deus e logo não subsiste sem ele um só instante. Descartes se utiliza de uma formulação lógica para chegar à prova da existência de Deus, porém isto só faz sentido para quem já acredita em Deus, implica antes na crença e isto não deixa de ser outro pressuposto, aliás, questão muito debatida entre os cartesianos.
Parte Quinta
Ordem das Questões de Física
Discorre sobre:
Ordem do mundo, da natureza, do corpo como máquina (idéia de mecanicismo)
Mecanicismo do corpo, coisa extensa.
A alma racional foi criada_ inatismo.
A alma é imortal porque é de natureza completamente diferente do corpo.
Parte Sexta
Que coisas são requeridas para avançar na pesquisa da natureza
Descartes admitia no seu Tratado do Mundo a teoria de Galileu a respeito do movimento da Terra. Disserta sobre a possibilidade de uma filosofia prática para dominar a natureza a partir da física; discorre também sobre a medicina e, enfim, sobre a aplicabilidade do método nas ciências para o bem estar do homem o qual teria como alicerce a própria filosofia. Realiza uma analogia, bastante conhecida, de seu mundo cartesiano com uma árvore: as raízes seriam como a Metafísica, o tronco, seria a física e as demais partes constituiriam todas as outras ciências.
Em relação à Filosofia Clínica, é possível realizar uma série de derivações, a começar pela pessoa de Renée Cartesius e o Tópico Busca, extremamente dominante em seu modo-de-ser, pois, ainda que não saibamos a real anterioridade do que o moveu na construção de seu Método, aquelas coisas nunca-ditas, podemos, contudo, aceitar o título e o subtítulo como fortes razões para um caminho traçado em Busca de um outro caminho.
A atitude inicial de Descartes de realizar uma suspensão de todos os conhecimentos que lhe chegaram pela tradição filosófica, os quais define como opiniões, é um bom exemplo de époché para os pré-juízos que vão sendo adquiridos e acumulados durante a vida. Entretanto, na passagem da Segunda Parte da obra, transcrita a seguir, o filósofo discorre sobre a ‘resolução de libertar-se de todas as opiniões já aceitas’, este ponto permite uma aproximação dentro da Filosofia Clínica com os pré-juízos. Porém, em seguida faz uma afirmação categórica de que “o mundo compõem-se, em quase sua totalidade, de dois tipos de espíritos para os quais isto está distante de ser conveniente”. Portanto, ‘libertar-se de todas as opiniões’ talvez não seja possível em sua totalidade, pois a permanência-temporária de tais opiniões, aproximativas de pré-juízos, tornam-se necessárias durante um tempo para que outras possam ser suspensas. Um exemplo cartesiano disso pode ser analisado quando Descartes expõe a moral provisória permanente, da qual ele julga necessitar até que seu método se estabeleça por completo. Isto possibilita a seguinte reflexão: até que ponto é preciso manter alguns pré-juízos fortes enquanto outros são re-pensados para que se possa ter por onde ir?, sem sentir a realidade destituída de circunstâncias que a constitui situando o modo-de-ser de cada um através de um reconhecimento de si mesmo, ainda que estes pré-juízos venham, logo depois, a ser substituídos por outras escolhas de “valores”, determinadas ou não por pré-juízos e opiniões.
“No que tange a todas as opiniões de que até a ocasião me cientificara não podia eu fazer coisa melhor do que tentar tirá-las de novo da minha crença para em seguida adotar outras melhores, ou as mesmas quando estivessem ao nível da razão. E acreditei com firmeza que, por esse processo, conseguiria orientar a minha vida muito melhor do que se limitasse a construir exclusivamente sobre velhos alicerces e a suster-me com os princípios sobre os quais me deixei persuadir em minha juventude, sem jamais ter examinado se eram verdadeiros. [...] A simples resolução de libertar-se de todas as opiniões já aceitas não é um exemplo que devam todos seguir; e o mundo compõem-se, quase que em sua totalidade, de dois tipos de espíritos para os quais isto está distante de ser conveniente, a saber: aqueles que, considerando-se mais capazes do que são, podem apenas ter juízos precipitados sem terem a paciência bastante para organizar com ordem seus pensamentos todos, de modo que, se tivessem uma vez tomado a liberdade de duvidar dos princípios que receberam e de se afastarem do caminho comum, não mais seriam capazes de manter o caminho que é necessário seguir para caminhar mais diretamente e ficariam imersos na confusão por toda a vida; e aqueles que, possuindo bastante razão ou modéstia para se terem por menos capacitados a distinguir o verdadeiro do falso do que alguns outros pelos quais podem ser instruídos, devem se contentar, antes, em seguir as opiniões destes, do que procurar eles mesmos, melhores.”
Descartes, R. Principais regras do método. In: Discurso sobre o Método, Segunda Parte.
1 Comentários:
Parabéns, não há o que dizer contra. Mandou muito bem na linhas, salvou meu pescoço e me instigou a terminar a leitura.
obrigado, peace.
FGringo
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