Bruxarias nietzschinianas
Pensamentos soltos & Malditos a respeito da Filosofia Clássica, da Vida e do Texto de Nietzsche Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral
1º§ ‘ Em algum remoto rincão do universo cintilante que se derrama em um sem-número de sistemas solares, havia uma vez um astro, em que animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais soberbo e mais mentiroso da ‘história universal’: mas também foi somente um minuto. Passados poucos fôlegos da natureza congelou-se o astro, e os animais inteligentes tiveram que morrer. Assim poderia alguém inventar uma fábula e nem por isso teria ilustrado suficientemente quão lamentável, quão fantasmagórico e fugaz, quão sem finalidade e gratuito fica o intelecto humano dentro da natureza. Houve eternidades, em que ele não estava; quando de novo ele tiver passado, nada terá acontecido. Pois não há para aquele intelecto nenhuma missão mais vasta, que conduzisse além da vida humana.’ Comentário: há nesse primeiro parágrafo uma referência à busca da episteme, do conhecimento filosófico, para isso Nietzsche se utiliza de uma metáfora em forma de fábula onde se pode inferir que não importam as teorias filosóficas elaboradas pelo homem — com a intenção de explicar questões como: qual a origem de tudo que existe? de onde viemos? para onde vamos? como conhecer aquilo que estrutura e organiza a realidade? — porque tais teorias serão sempre ‘inventadas’ pelo intelecto humano, como fábulas de que o homem sempre necessitou e necessita para viver. Fábulas após fábulas, sustentação abstrata onde cabem todos os ‘universos cintilantes’, feita de palavras e conceitos para propiciar uma continua ilusão em hipóteses metafísicas e, assim, seguirá vivendo, o homem, esse ‘minuto soberbo’ de sua própria história que julga ser uma história universal. Instantes que concedem fundamentação existencial, já que o homem não conseguiria ‘conduzir-se’ sem olhar para estrelas que ele próprio criou. Estrelas que parecem verdadeiras e que, por isso, atravessaram séculos, movidas pela in-tolerância quanto à inacessibilidade da ‘coisa em si’. Mas, o que poderia restar ao homem, caso ele abandonasse sua ilusão tão bem ‘construída’ de teorizar o mundo de forma transcendente? O que o faria viver em direção a uma estrela qualquer, esteja ela num céu platônico ou em seus pensamentos? Teoricamente tudo é possível, ouve-se com freqüência essa afirmação, que soa como uma forma de justificar tantos sistemas filosóficos quando, quem sabe, fosse mais simples dizer: eis as fábulas, eis os homens. O que é, então, o intelecto humano diante desse ‘universo cintilante que se derrama em um sem-número de sistemas solares’? Pequenas fábulas inventando fábulas para explicar o ‘além da vida humana’? O que é esse ‘além da vida humana’, senão a própria vida transportada continuamente para dentro de si própria? ‘(...) Mas se pudéssemos entender-nos com a mosca, perceberíamos então que também ela bóia no ar com esse páthos e sente em si o centro voante deste mundo. Não há nada tão desprezível e mesquinho na natureza que (...) não transbordasse logo como um odre; (...) mesmo o mais orgulhoso dos homens, o filósofo, pensa ver por todos os lados do universo telescopicamente em mira sobre seu agir e pensar!’ Aqui uma alusão à vaidade e pretensão do pensamento humano, o homem sábio julga, conscientemente, que sua teoria é a verdade a ser estendida para o resto da humanidade. Não bastasse a pretensão de inventá-la, ainda pretende convencer o mundo de que o seu ‘centro voante’, se não é o verdadeiro, pelo menos, é o mais plausível humanamente. Eis o problema: humanamente. E este olhar, de filósofo, (portanto um olhar privilegiado) pode, assim, ver o universo quase como um ser onipotente e onisciente, porque sua vaidade vai além de seu mundo limitado, mas continua dando voltas e mais voltas e em sua finitude humana cerca-se de um espaço que julga ser atemporal. E assim como ela - a mosca - foge de nosso alcance, quando percebe seu ‘centro voante’ ameaçado, o homem vaidoso tenta justificar a todo e qualquer custo suas hipóteses tão bem fabuladas por tal intelecto, brilhante, pois eis que, é um filósofo. ‘É notável que o intelecto seja capaz disso, justamente ele, que foi concedido apenas como meio auxiliar aos mais infelizes, delicados e perecíveis dos seres, para firmá-los um minuto na existência (...)’ Nietzsche refere-se aqui a todos os homens?, ou a parte deles?, pois na seqüência do texto pode estar se referindo aos filósofos; no entanto, chamar os filósofos de delicados não parece condizente com a vaidade de se enquadrarem como senhores de si mesmos em um mundo onde a verdade não é senhora de si ou podem eles terem tamanha vaidade aliada à delicadeza? Embora a leitura seja ambígua nesse sentido, há aqui presente a questão de que o intelecto, julgado por Nietzsche como um meio auxiliar para a vida, transforma-se na fundamentação total da existência humana enquanto ser que, apesar de finito, tem direito a alguns minutos de uma suposta imortalidade, caso conceda ao universo a explicação transcendente que ele esqueceu de deixar em algum lugar. E assim como o pais contam historinhas de fadas para os filhos dormirem à noite, os filósofos contam fábulas para que a humanidade também possa adormecer suavemente, embalada em ilusões, transportadas de intelectos geniais para a necessidade de se crer em algo ‘além da vida humana’, muito além. Envoltos neste sono fabuloso, vamos de Platão a Heidegger, procurando aquela que mais substitua os contos da infância; o pensamento precisa, então, fazer um esforço de continuar a auto-afirmação de sua existência substituindo tais fábulas. Este esforço, quando não o condena, o faz viver. E de uma a uma vamos vivendo e sorrindo ao adormecer, porque sabemos: quando tais palavras não mais forem convincentes lá estarão outras a nos esperar. Há mais fábulas do que as noites que ainda teremos para adormecer, num mundo que não nos dá nenhuma garantia de que ainda poderemos, uma vez mais, ouvir outras ‘histórias’. E, depois, acordar novamente para um novo dia, também envolto em ilusões, que prometendo a ‘verdade’, prometendo espantar nossas perguntas sem respostas fornecem o impulso para a própria vida, enquanto ela aí estiver. Tais ilusões, serão mais sempre e tão mais necessárias do que o nosso próprio fechar de olhos. Uma vida vivida ao avesso, ao contrário, uma espécie de ‘eterno retorno’ invertido, disfarçado de lucidez, clareza, longe de enganos... um eterno retorno continuamente mal compreendido, será sempre o mesmo. ‘Aquela altivez associada ao conhecer e sentir, nuvem de cegueira pousada sobre os olhos e sentidos dos homens, engana-os pois sobre o valor da existência, ao trazer em si a mais lisonjeira das estimativas de valor sobre o próprio conhecer (...)’ Esta associação da qual Nietzsche fala é nociva ao homem? Mas o que lhe restaria se tanto o conhecer como o sentir são enganosos sobre o valor da existência humana? O que não seria um auto-engano para perceber o valor de tal existência e vivê-la verdadeiramente? Qual seria o verdadeiro valor sobre o conhecimento? ‘O intelecto, como um meio para a conservação do indivíduo, desdobra suas forças mestras no disfarce; pois este é o meio pelo qual os indivíduos mais fracos; menos robustos, se conservam, aqueles aos quais está vedado travar uma luta pela existência com chifres ou presas aguçadas.’ A luta do homem em relação a outro homem, é sutil, repleta de artimanhas, através de mil disfarces consegue, o homem, vitórias que somente ‘presas aguçadas’ não lhe concederiam, ele pode, dessa forma, ser mais implacável. Deixar o sangue escorrer pela pele ou deixar o pensamento escoar de sua própria consciência (mesmo que ilusória) o que seria mais nocivo? ‘No homem essa arte do disfarce chega a seu ápice; aqui o engano, o lisonjear, mentir e ludibriar, o falar-po-trás-das-costas, o representador, o viver em glória de empréstimo, o mascarar-se, a convenção dissimulante, o jogo teatral diante de outros e diante de si mesmo, em suma, o constante bater de asas em torno dessa única chama que é a vaidade, é a tal ponto a regra e a lei que quase nada é mais inconcebível do que como pode aparecer entre os homens um honesto e puro impulso à verdade.’ Com tantos disfarces, Nietzsche pergunta ‘como pôde aparecer entre os homens um honesto e puro impulso à verdade’. Há aqui uma ironia ou Nietzsche crê ser isso destituído de disfarces? Se o homem está sempre às voltas com suas próprias ‘fábulas’, não precisariam estas também de disfarces e palcos adequados? A verdade converte-se, então, numa desculpa para se inventar mais e mais figurinos intelectuais? Ou há realmente esse impulso à verdade?
‘Eles estão profundamente imersos em ilusões e imagens de sonho, seu olho apenas resvala às tontas pela superfície das coisas e vê ‘formas’ sua sensação não conduz em parte alguma à verdade, mas contenta-se em receber estímulos e como que dedilhar um teclado às costas das coisas.’ Uma crítica às ‘formas’ de Aristóteles e ao próprio Platão, que também se utilizou desse termo como significando idéia (eidos). Crítica a todo e qualquer Realismo que vem pela tradição clássica da Filosofia: uma filosofia imersa em ‘imagens de sonho’, portanto, falsa.
‘Por isso o homem, à noite, através da vida, deixa que o sono lhe minta, sem que seu sentimento moral jamais tentasse impedi-lo (...) O que sabe propriamente o homem sobre si mesmo?’ Que sentimento moral seria esse que impediria que o homem mentisse para si próprio?, fosse através de sonhos ou da realidade transformada em sonho? E como seria esse sentimento moral? O que é exatamente ‘moral’ para Nietzsche? Os sentidos seriam mais importantes do que o pensar para conduzir o homem na vida? Este sentimento moral não seria elaborado por palavras e conceitos que percorrem nossos pensamentos? O disfarce do qual Nietzsche fala não existe sobretudo dentro do nosso próprio pensar (intelecto)? Um disfarce criado_ peça por peça através da linguagem_ e que após algum tempo, acumulados e bem aderentes às nossas atitudes deixam de ser palavras para encenarem num palco um roteiro que só quem o escreveu consegue compreendê-lo e que já não o considera como tal, pois conseguiu convencer-se também a si próprio: vitorioso, sente-se uma fábula perfeita. ‘(...) Ela (a consciência) atirou fora a chave e ai da fatal curiosidade que através de uma fresta foi capaz de sair uma vez do cubículo da consciência e olhar para baixo, e agora pressentiu que sobre o implacável, o ávido, o insaciável, o assassino, repousa o homem, na indiferença de seu não-saber, e como que pendente em sonhos sobre o dorso de um tigre. De onde neste mundo viria, nessa constelação, o impulso à verdade.’ Por que a própria consciência tenta aprisionar-se?, e quando movida por um impulso qualquer assusta-se com a in-diferença que há em si mesma? com o não-saber que julga ser o contrário? Prefere ainda, continuar ‘pendente em sonhos’, por sobre uma força irracional - como poderia tal consciência ter um ‘impulso à verdade’? ‘Repousa o homem’ uma vez mais, e pela ‘fresta’, que surge ao acaso, percebe, este homem que repousa, que o ‘espírito livre’, que julga ser, está sob as garras do tigre, enquanto seus sonhos pendem por sobre seu dorso, aprisionados. Talvez, daí a metáfora ‘tigre’: os sonhos, estruturas ideais, estão falsamente ‘livres’ porque estão sobre uma força irracional, enquanto que a consciência verdadeira, esquecida de si mesma e de sua realidade, pois ‘jogou fora a chave’, encontra-se esmagada sob as garras do tigre, aprisionada, talvez porque a racionalidade dos filósofos sistemáticos seja vista por Nietzsche como irracionalidade. ‘Pendente sobre o dorso de um tigre’, talvez possa simbolizar a dupla condenação humana, ‘o que sabe o homem sobre si mesmo?, conduz a um paradoxo: continuar em ilusões é uma condenação, só que não saber disso afasta o homem de sofrer, por outro lado, o conhecer a si mesmo não seria também uma condenação? Não vejo em Nietzsche uma possibilidade de felicidade para o homem, pois se de um lado tem-se a mediocridade do auto-engano, do outro, tem-se a busca difícil e interminável de conhecer-se a si mesmo, como poderia ele sentir-se ‘bem’ num mundo em que as possibilidades ou são auto-enganos ou uma forma de viver lúcida, mas que o arrasta para uma vida in-feliz? ‘(...) Agora, com efeito, é fixado aquilo que doravante deve ser ‘verdade’, isto é, é descoberta uma designação uniformemente válida e obrigatória das coisas, e a legislação da linguagem dá também as primeiras leis da verdade: pois surge aqui pela primeira vez o contraste entre verdade e mentira. (...) Ele ( o mentiroso) faz mau uso das firmes convenções por meio de trocas arbitrárias ou mesmo inversões dos nomes. Se ele o faz de maneira egoísta e de resto prejudicial, a sociedade não confiará mais nele e com isso o excluirá de si. Os homens nisso, não procuram tanto evitar serem enganados, quanto serem prejudicados pelo engano: o que odeiam, mesmo nesse nível, no fundo não é a ilusão, mas as conseqüências nocivas, hostis, de certas espécies de ilusões. (...) E além disso: o que se passa com aquelas convenções da linguagem? São talvez frutos do conhecimento, do senso de verdade: as designações e as coisas se recobrem? É a linguagem a expressão adequada de todas as realidades?’ (...) ‘Somente por esquecimento pode o homem alguma vez chegar a supor que possui uma ‘verdade’no grau acima designado. Se ele não quiser contentar-se com a verdade na forma da tautologia, isto é, com os estojos vazios, comprará eternamente ilusões por verdades. O que é uma palavra? (...) Dividimos as coisas por gêneros, designamos a árvore como feminina, o vegetal como masculino: que transposições arbitrárias! (...) As diferentes línguas, colocadas lado a lado, mostram que nas palavras nunca importa a verdade, nunca uma expressão adequada: pois senão não haveria tantas línguas. A ‘coisa em si’(tal seria justamente a verdade pura sem conseqüências), é, também para o formador da linguagem, inteiramente incaptável e nem sequer algo que vale a pena. Ele designa apenas as relações das coisas aos homens e toma em auxílio para exprimi-las as mais audaciosas metáforas.’ Nietzsche diz que as palavras não podem chegar a desvendar o mundo da ‘coisa em si’, pois o homem constrói metáforas para seu próprio mundo, acredita nelas e transfere a convicção de seus pensamentos para ‘a coisa em si’. ‘(...) Primeira metáfora. A imagem, por sua vez, modelada em um som! Segunda metáfora. E a cada vez completa mudança de esfera, passagem para uma esfera inteiramente outra e nova. (...)’ O mundo como uma metáfora é uma constatação para Nietzsche ou ele critica isso? Pois se o mundo não é mais do que uma metáfora o que ele é então? E, depois, se as metáforas levam a uma cadeia, digamos assim, de intermináveis metáforas, um 'transportar para além de', que depois será novamente transportado para além de, e assim por diante, não houve e continuará havendo, dessa forma, uma distância cada vez maior das coisas? De onde partiram e de onde partem as metáforas? Houve uma primeira que pudesse estar mais próxima da verdade? Se o mundo é um batalhão móvel de metáforas deve ter existido um instante em que uma primeira metáfora surgiu para explicar alguma coisa.... e o mundo iniciou seu curso metafórico e ‘feliz’, sem que as pessoas quisessem outras coisas além de transportarem sua existência para algo que pudesse refletir uma proximidade com a ‘coisa em si’, inacessível, o homem perdeu-se com a primeira metáfora transcendente que habitou a terra. Porém, como a ‘gênese da linguagem’ nada tem a ver com a ‘essência das coisas’, as metáforas, portanto, nada tem a ver com ‘a coisa em si’, a origem das coisas, do homem, do mundo, nada tem a ver com tudo o que ele faz, pensa, acredita, vive... o homem é uma metáfora para si mesmo; se não sabe disso, vive melhor, se sabe... perde-se em sua própria linguagem que quando bem elaborada lhe concederá um tempo ilusório mais confortável a ser vivido; quando pobre, mentirá de forma medíocre e nem ao menos saberá disso. Mesmo elas, as metáforas, devem estar em níveis diferentes para cada ser que as pensa, metáforas são pontos de vistas, estes são pensamentos subjetivos, que depois de transportados da linguagem para o pensamento e do pensamento para a linguagem num círculo sem fim, transformam-se em outras mais segundo aquilo que se necessita crer, segundo aquilo que se necessita ‘viver’. Quais seriam as mais nocivas ou quais teriam o poder de salvar o homem de si mesmo? Aquelas que são de imagens ou de idéias? Em todos os casos, transportar uma pretensa verdade para uma imagem ‘colorida’ não deixa de ser um consolo para a humanidade. Se a linguagem não pode levar às coisas em si toda a Filosofia é inútil nesse sentido de busca ontológica? A Metafísica não sendo pragmática, sendo feita apenas de possibilidades, seria a maior ilusão do homem? Ou a maior ilusão do homem é estar vivo? É a sua própria vida, sua maior ilusão? Se tudo é ficção, se tudo é forjado, ser para si mesmo uma ilusão não seria também uma metáfora? O homem, portanto, não tem direito nem à metáfora de que está imerso em suas fábulas, pois não tem certeza do que seja isso. Não tendo certeza de nada, o que também é uma metáfora, o que lhe restaria se a humanidade resolvesse parar, toda ela, no mesmo instante, de mentir em rebanho, em coletividade? O que aconteceria se num dado e exato momento todos tivessem a lucidez de pensar: o mundo da forma como foi vivido sempre foi e continuará sendo uma mentira? Para que garantir a continuidade das fábulas...se cada um inventa para si próprio a sua? Se não precisassem de consenso o mundo não cairia tanto em mesmices... pois mesmo tais ficções viram rotina, viram trivialidades, viram ‘nada’ , porque no fundo tudo que existe por um longo tempo acaba por cansar. Fazer ficção de si mesmo cansa, por mais que nos esforcemos para mudá-la, um dia ela estará tão aderente, já tão rotineira, tão adaptada em um ir-e-vir que não fará diferença que seja verdade ou ficção, pois também o homem se cansa de transportar mentiras para dentro de si próprio. E sua maior ficção, de encontrar um dia a coisa em si, o faz gostar da idéia de um dia morrer para conhecê-la, exatamente o que o deixa imerso em mentiras durante toda sua vida se torna o consolo para sua finitude. ‘Todo conceito nasce por igualação do não-igual.’ Assim como é certo que nunca uma folha é inteiramente igual a um a outra, é certo que o conceito de folha é formado por arbitrário abandono dessas diferenças individuais, por um esquecer-se do que é distintivo (...)’ ‘O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas. Continuamos assim sem saber de onde provém o impulso à verdade (...)’
‘(...) Como é diferente, sob o mesmo infortúnio, o homem estóico instruído pela experiência e que se governa por conceitos. Ele, que de resto só procura retidão, verdade, imunidade a ilusões, proteção contra as tentações de fascinação, desempenha agora, na infelicidade, a obra-prima do disfarce, como aquele na felicidade; não traz um rosto humano, palpitante e móvel, mas como que uma máscara com digno equilíbrio de traços, não grita e nem sequer altera a voz: se uma boa nuvem de chuva se derrama sobre ele, ele se envolve em seu manto e parte a passos lentos, debaixo dela.’ Tanta preocupação em sentir, pensar, em se tornar um ser impassível, apático, com uma tranqüilidade que beira à ‘morte’, talvez venha a significar que o homem, na verdade fraco e perdido em conceitos que faz sobre si mesmo, perde-se ainda mais tentando ‘forjar’ aquilo que não está em sua natureza. Julga estar próximo de ser nobre e ao desprezar qualquer coisa que possa tirar-lhe tanta previsão e estabilidade diante do mundo, acaba por esquecer tudo o que já foi ou poderia ter sido; a ‘chuva’, então, nada pode contra ele, envolvendo-se em seu ‘manto’ seguirá ‘a passos lentos’, a não se importar com suas memórias ou com o quer que seja, junto com a chuva e com o tempo tudo se perderá em troca da postura impassível. Poderá, no entanto, sorrir para si sem que ninguém veja que o faz, encoberto pelo seu ‘manto’ e no silêncio das palavras, caminhará cada vez mais longe de passos duvidosos e a adoração pelas in-certezas e dúvidas parecerá a ele algo insano e sem nenhuma dignidade.
Anna & as Bruxarias das Idéias Nietzschianas retornando para Imagens de Sonhos-Reais
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