segunda-feira, 5 de setembro de 2005

Pequeno Tratado das Grandes Virtudes: A Generosidade_ A Compaixão

Resenha & Comentários sobre o Ensaio
Sponville inicia o texto com uma afirmação sobre a generosidade enquanto virtude: “a generosidade é a virtude do dom.” Seria preciso compreender inicialmente qual o significado de “dom” para o ensaísta francês. Entretanto, ele não se deterá diretamente nisso, pois o texto segue com uma citação de Spinoza através da qual Sponville expõe uma diferenciação entre o que seja oferecer algo por meio das leis, da justiça e oferecer algo por meio da generosidade porque esta “é mais subjetiva, mais singular, mais afetiva, mais espontânea, ao passo que a justiça, mesmo quando aplicada guarda em si algo mais objetivo, mais universal, mais intelectual ou mais refletido.” Na seqüência, o filósofo pergunta: “O que é a solidariedade?” Como estado de alma, “a solidariedade nada mais é que o sentimento ou a afirmação dessa interdependência.” Discorrerá então sobre estados de alma, como o egoísmo, para dizer que a “solidariedade é demasiado interessada ou demasiado ilusória para ser uma virtude.” Interessada porque ao defender o outro nada mais faço que defender a mim mesmo. A menção sobre a etimologia da palavra solidariedade é colocada como um questionamento sobre o seu mau uso sendo então derivada para exemplos de situações dos países de terceiro mundo. Entretanto, desejamos manter o texto a partir do raciocínio inicial do filósofo sobre o ser-da-Generosidade. A ligação entre ambas as virtudes é, “a solidariedade pode motivá-la [a generosidade], suscitá-la, reforçá-la, não há dúvida”, porém isto só é verdadeiro quando isento de interesses próprios, a solidariedade deve ir além de si mesma. A generosidade, por sua vez, está unida ao coração, assim “o coração é que é mau, pois é egoísta; a generosidade, muito mais que a lucidez, é que nos falta”, de onde se deduz, a falta de generosidade resulta num temperamento egoísta. Fornece exemplos que se direcionam a “domínios financeiros” como atos generosos para em seguida perguntar “mas por que milagre seríamos mais generosos nos domínios não financeiros ou não quantificáveis?” Esse questionamento conduz à observação de que a generosidade é subdividida segundo o ‘objeto’ ao qual se destina. “Como saber se o pouco que damos é generosidade de fato ou se é preço do nosso conforto moral?” Sponville conclui essa reflexão dizendo, “o egoísmo é mais forte sempre, porque a generosidade só brilha, na maioria das vezes, por sua ausência.” Ou seja, as atitudes que demonstram a falta de generosidade acabam por apontar para a mesma: a generosidade existe, pois que nos falta. Pascal diz que isso se deve ao fato de que o coração do homem “está quase sempre cheio de si mesmo”. Para haver o ‘ser generoso’ seria, então, necessário despojar-se um pouco de si próprio para dar espaço ao outro: o sentimento de altruísmo, sendo que este despojar-se teria que vir do coração. Neste ponto o autor retorna para a afirmação inicial: a “generosidade é um dom”, o homem só pode dar aquilo que possui dentro de si, é o “domínio de si próprio” que de certa forma constitui este dom, este “dar”. A partir de uma citação de Descartes, Tratado das paixões, Sponville busca o essencial desse conteúdo: “ser generoso é saber-se livre para agir bem e querer-se assim”. Isto significa, “o homem generoso não é prisioneiro de seus afetos, nem de si; ao contrário, é senhor de si e, por isso, não tem desculpas nem as procura. A vontade lhe basta. A virtude lhe basta.” O dom é a vontade do próprio coração de não estar sempre cheio de si mesmo_ o egoísmo_ e que se constitui então em generosidade, o voltar-se para o outro, o olhar para o outro sem que isso seja determinado por interesses particulares. “O que há de mais sórdido do que o egoísmo”?_ pergunta o autor, colocando ao lado desse defeito “as pequenas covardias”, “pequenas cóleras e " pequenos ciúmes”. A vontade do ser-generoso ou do ser-egoísta é a causa de um e de outro, então a vontade parece determinar a generosidade e o egoísmo, mas o que determina ou implica que essa vontade seja uma e não outra? Sponville nos dá essa resposta? Vejamos o que ele nos diz ainda. Através de uma comparação entre amor e vontade, afirma: “o amor não se comanda”, não se encontra no domínio do coração, não se decide amar esta e não aquela pessoa, amamos simplesmente; a generosidade, por outro lado, pode ser comandada pela vontade. Mas o que comanda a vontade que parece ser o ‘impulso’ para que a generosidade se dê? Voltando à reflexão sobre Descartes, deduzimos, essa vontade é dada pelo domínio de si mesmo: “o homem generoso não é prisioneiro de seus afetos, nem de si, ao contrário, é senhor de si e, por isso não tem desculpa, nem as procura.” Terminamos o texto, perguntando como então se pode fazer uso da vontade por meio do domínio de si próprio e ao mesmo tempo se permitir amar? Desde que Sponville sugere que amor e vontade são ambos sentimentos, mas, por um lado, se é possível ser senhor de si mesmo, a generosidade impulsionada pela vontade, por outro, no que se refere ao amor não há esse livre-arbítrio, não escolhemos a quem amar, logo como conciliar tal espontaneidade do coração e tal ‘racionalidade’, necessária para que se possa ser “senhor de si próprio” sem o risco de racionalizar o sentimento de amar? Além disso, se “a generosidade parece dever mais ao coração ou ao temperamento; a justiça, ao espírito ou à razão”, como é dito no início do ensaio, ter-se-ia que aceitar que essa vontade_ da generosidade_ sendo devida mais ao coração que à razão, fica distante de qualquer domínio que se pudesse realizar sobre si mesmo. Se for possível racionalizar um sentimento dado pelo coração como fazer isto então com a “generosidade” e não, por exemplo, com o “amor”? A Compaixão Sponville inicia a reflexão afirmando como a compaixão é vista pelos homens, diz ele: “a compaixão tem má reputação.” Por que o autor realiza essa afirmação? Porque a gênese da palavra vem unida ao termo compadecer e ‘compadecer é sofrer com e todo sofrimento é ruim.’ Daí sua má reputação, pois o sofrimento não é exatamente o que as pessoas desejam. A etimologia consta no dicionário como sendo oriunda do latim compassione e significa ‘pesar que em nós desperta a infelicidade, a dor, o mal de outrem, piedade, pena, dó, condolência’. Se a compaixão vem ligada a sofrimento é deste que provém a idéia de que ser compassivo conduz a sofrer junto com o outro e um ‘coração egoísta’ não se permite tal virtude. Afinal, por que alguém iria querer sofrer pelo outro? Junto com a dor do outro? Se já tem a sua própria dor — ainda que existencial — para suportar? Esta já lhe basta em seu próprio existir. Segue discorrendo sobre a etimologia em grego, seu significado é simpatia e se pergunta: se esta “desempenha um papel tão importante por que a compaixão é tão mal vista?” Dessa ambigüidade a partir de sua gênese o autor pergunta pela fraqueza e pelo essencial da força da compaixão. Tais reflexões etimológicas sugerem diferenças, a partir do grego a concepção de compaixão é algo bom e, segundo Sponville, de onde viria o essencial de sua força enquanto virtude. Por outro lado, a partir do latim, a idéia é contrária, ou seja, seria uma fraqueza da alma humana. Isto nos leva a perguntar: as transformações culturais e até mesmo etimológicas estão ligadas à forma do homem pensar nesta ou naquela época? De onde provém a mudança de que uma palavra significa isto — força — e mais tarde aquilo — fraqueza? O que determinaria concepções contrárias como esta? O filósofo define a simpatia como sendo “a participação afetiva dos sentimentos do outro, ter simpatia é sentir juntos, ou do mesmo modo, ou um pelo outro.” Daqui poderíamos derivar, se simpatia é sentir junto com o outro e do mesmo modo isto não significa que o seja somente na alegria, mas também na dor do outro. Talvez daí a derivação da compaixão-simpatia (grego) para compaixão-sofrimento (latim). A partir de Max Scheler, o escritor indaga pelo valor da compaixão-simpatia. Diz ser possível tal sentimento, citando Scheler, ao “partilhar a alegria que alguém sente diante do mal, (...) partilhar seu ódio, sua maldade, sua alegria perversa — tudo isso de certo nada tem de moral.” Por isso, a simpatia não pode ser uma virtude, porque não necessariamente ‘sentir junto com’ e ‘sentir do mesmo modo’ esteja associado a virtudes as quais se atribui um determinado valor. Partilhar o ódio e a maldade não são valores, portanto não são virtudes e, nesse sentido, a compaixão enquanto simpatia não seria uma virtude. “A compaixão é essa lástima, ou antes, essa lástima é a forma mínima da compaixão”, quando se partilha da maldade. Após passar por uma numerosa lista de filósofos e reflexões sobre a compaixão, no final do texto afirma: “a compaixão é um sentimento.” E, “os sentimentos não são um destino, que poderíamos apenas ter que suportar.” Nesse sentido, a virtude é algo que se exerce, que se pode desenvolver dentro de si, pois ela “é um esforço, um poder e uma excelência”. A passagem do sentimento para a ordem ética — que constitui qualquer virtude — implica em escolhas durante todos os momentos da vida, escolhas implicam em questões tais como: “quem pode ter certeza de já ter conhecido um verdadeiro movimento de caridade, de compaixão, e quem pode duvidar?” Em todos os casos, saindo das teorias e da gênese das palavras, aceitamos a sugestão de Sponville: “coragem a todos e compaixão também para si.” Mas isto já envolve outros sentimentos, para ser virtuoso é preciso coragem e para exercer a compaixão — sentir junto com o outro — é necessário antes ter passado pelo sentimento de compaixão-simpatia também para consigo próprio e, então, “junto com”, ainda que em meio a tudo isso estejamos sujeitos à simpatia do mal — mesmo em relação aos nossos sentimentos, os quais se sente junto consigo próprio. by sandra fasolo