sexta-feira, 16 de setembro de 2005

O Alienista de Machado de Assis

No prefácio à obra, a comentadora de Machado de Assis, Maria Faria, refere-se a este conto-novela machadiano como sendo todo ele uma interrogação sobre a fronteira entre a normalidade e a loucura. Simão Bacamarte é um médico de Itaguaí que resolve dedicar-se a pesquisas sobre a insanidade. Para tanto constrói uma casa que hospedará todos os ‘doidos’ da cidade. No Capítulo IV, Simão Bacamarte, pensa ter encontrado a definição do que seja a loucura, após ter fundado a Casa Verde e ter analisado muitos que se encontram por ali, diz ele: suponho o espírito humano uma vasta concha, o meu fim, Sr. Soares, é ver se posso extrair a pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razão e da loucura. A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia e insânia. Essa é, de fato, sua primeira teoria e certeza sobre a loucura dos cidadãos de Itaguaí. Nesse ponto da narrativa, ele julga ter encontrado sua busca sobre o limite entre a razão e a loucura. Nesse sentido, talvez fosse interessante que nos perguntássemos: mas o que é esse equilíbrio? O que o define? Qual a condição a priori e, no caso de Simão, científica, que pode lhe dar a certeza de saber quem possui o equilíbrio e quem não o possui? Qual seria esta fronteira que delimita no ser humano: isto é racional e, portanto, sanidade; isto não é racional e, logo, insano, ou seja, loucura? Machado parece realmente estabelecer uma crítica ao cientificismo da época e realizar as perguntas que Kant fez em relação ao conhecimento, porém, o escritor o faz referindo-se à loucura. Quando Kant questiona: o que posso conhecer? o que devo fazer? o que me é permitido fazer?_ podemos transpor para a questão machadiana: o que é possível conhecer sobre a razão e sobre a loucura? O que posso fazer que esteja dentro dos limites da razão?_ sem ultrapassar a linha limítrofe? O que me é permitido fazer que não seja considerado insano ou louco? E, principalmente, o que é ser ou estar louco? No decorrer da narrativa, muitos cidadãos que antes se supunham ‘equilibrados’ acabam recolhidos à Casa Verde _ essa Bastilha da razão humana_ o que leva o vereador a seguinte dúvida: nada tenho que ver com a ciência; mas se tantos homens em quem supomos juízos são reclusos por dementes, quem nos afirma que o alienado não é o alienista? A história segue com uma instigante inversão: os loucos são libertados e os perfeitamente equilibrados, quase perfeitos, são internados, pois Simão chega a uma teoria inversa à primeira, os totalmente equilibrados devem ser internados e curados, estes são os verdadeiros loucos. Usa métodos terapêuticos individuais segundo a perfeição de cada um para conduzi-los de volta ao desequilíbrio, condição para sua liberdade. A narrativa termina com todos os cidadãos livres e ‘curados’ do perfeito equilíbrio e Simão sendo, ele mesmo, o único paciente da Casa de Doidos que ele próprio fundara. O que podemos perceber nesse conto de Machado de Assis é a relativização da definição sobre o que seja a razão e o seu equilíbrio e sobre o que seja a loucura ou alguma espécie de faculdade-insana. Pensando em Shakespeare, há muito mais coisas entre a razão e a loucura do que sonha o nosso possível conhecimento_ e ambição de certezas absolutas e imutáveis, em especial, quando ‘aplicadas’ a outros seres humanos na tentativa de convencê-los daquilo que, talvez, nunca tenham sido ou jamais venham a ser durante toda sua existência.
Anna & uma breve análise_ sobre as fronteiras da loucura e da razão_ embalada ao som de Tangerine Dream & Cafés & Cigarros de Creme
2004