sábado, 15 de abril de 2006

Felino Em Oito Tempos

Tempo 1_ Cada vez em que nos encontrávamos eu lembrava da epígrafe de um dos contos de Théophile Gautier, Vi, sob sombrios véus Onze estrelas A lua, e também o sol Me fazendo reverência Em silêncio Enquanto dormia, à diferença do Clube dos Haxixins, meu estado entre sonhos e realidade vinha mesmo de sonhos enquanto dormia. Por que a tua presença aparecia em sonhos depois de termos trocado rapidamente algumas palavras sobre literatura e filosofia? Ninguém não sabe. Eu também não. Nem você. O mundo todo não sabe. Mas continua sonhando, sonhos da realidade, sonhos dentro de um sonho, sonhos embalados pelo alquímico.
Tempo 2_O sonho: falávamos sobre Merleau-Ponty, não havia a minha imagem nem a dele no sonho, somente nossas vozes sonhavam. C. começou então a explicar a linguagem em Merleau-Ponty enquanto estávamos parados no início de um corredor de madeira, havia na sua metade, antes de uma porta, um prato bem perto da parede que também era de madeira, e havia um líquido dentro do prato. Neste instante em que percebo a imagem do prato um gato se aproxima sem que para isso tivesse dado muitos passos_ talvez nenhum_ surge de repente apenas, C. começa a falar sobre a linguagem através dos passos que o gato dará. Tudo isso foi apenas sentido por mim sem que eu tivesse visto nem a mim nem a C. em momento algum, como se eu pudesse “ver” a parte que não me pertencia através de um olhar que tampouco era o meu. O felino centra sua atenção no prato de madeira com cor de prata, suavemente, como é próprio de sua delicadeza, parece dar algumas lambidas no, talvez, leite, move-se com tanta suavidade que sinto nele a presença do que seria a lentidão do viver sem a ambição existencial que nos é própria como seres humanos. A graça e suavidade dele me conduzem à imagem de uma criança. Em seguida, o gato se põe a caminhar, porém: a caminhar no ar, não dá muitos passos, a imagem dele pára exatamente acima/sobre o prato, paira no ar com uma patinha à frente como se fosse continuar andando, contudo permanece completamente imóvel. Há ainda leveza e suavidade na imagem, como um quadro com vida que de repente se congela diante de nossa observação, ainda que em uma imagem fixa ele conserva a suavidade do antes. C. & sua voz continuam falando sobre Merleau-Ponty, a linguagem é assim como estamos vendo agora a imagem graciosa do felino, diz ele. Eu procuro abstrair, ligar a imagem com a linguagem, porém o fato é que a imagem é mais forte do que as palavras que ouço. Há algo na imagem que me prende além das palavras, contudo, eu olho, eu escuto e percebo a imobilidade do que vejo e de onde não consigo tirar meus olhos. C. continua a falar, diz, quebrando um pouco as minhas sensações com as palavras, que isso se chama mediação e explica que essa é a razão pela qual o gato parou na metade do caminho e não por acaso exatamente sobre o prato. “Vês? Ele está imóvel, mas algo nele ainda manifesta um devir, a patinha esquerda está à frente, ele ainda está em devir mas não sabe disso, é apenas um “sinal” perceptível para nossa observação, mais nada. Há algo imprescindível para a própria existência na imagem. Há algo de necessário e longe de contingências quando deixamos de lado palavras por imagens? E é por isso que ele paira "sobre", é a mediação. “Você está ouvindo, Karenina?”, pergunta C. Sim, ouvia, mas aquela imagem fora uma das coisas mais estranhas que já vira. Aquela imagem desejava dizer muito mais que mediação ou ilações sobre linguagens que explicam o mundo e seu devir, que pretendem explicar cada instante de nossa Vida e Não-Vida, aquela imagem não era só o felino, não era só a fixidez, não era só o estranho, não era só o meu olhar que se envolvera no sonho. Um gato parado etereamente alguns centímetros acima do prato com a patinha à frente e uma voz que eu conhecia falando sobre linguagem, a diferença é que neste sonho, sonhara com alguém que conhecia.
Cenas possíveis a prioris, mas a posterioris do sonho surreal:
Tempo 3_ Surreal ou Infantil? Como definir o sonho? A imagem do felino seria ouvida com alegria por uma criança de 3 anos, ela sorriria no início, depois faria perguntas, “como o gato fora parar muito acima de onde estava o prato? Por que ele ficara imóvel? Posso tocar nele? Para onde ele vai depois? Ainda tem leite no prato? Será que ele não está com sede ainda? Como é o seu nome? Mas, as explicações sobre a linguagem não despertariam nela qualquer interesse. Talvez repetisse: mediação. Talvez repetisse: gato, felino, leite e prato. E a imagem seria para ela muito mais interessante do que qualquer palavra que ouvisse. Haverá um dia em que serei somente imagem, sem linguagem alguma, nesse dia, eu tenho certeza de que sentirei o mundo fenomênico bem próximo, tão próximo que só a imagem do mundo em si será suficiente para compreendê-lo sem o som de palavras. Neste dia, terei retornado à infância e sentirei, não os sonhos, mas o mundo como algo completamente surreal. Talvez, também, os seres humanos, mas não todos. Sei que não.
Tempo 4_ O acordar virou um longo email com pretensão de descrever a C. algo que ele viveu, mas não sabia disso porque o vivido pertence ao meu estado de sonhos e todo o estado de sonhar é solipsista em si, assim C. jamais irá conseguir visualizar a imagem do gato por mais que eu me esforce em realizar a melhor descrição que poderia, C. viveu algo que não-viveu em realidade, seria mágico se eu pudesse chegar e dizer-lhe: veja, você viveu algo tão surreal, quer dizer, vivemos alguns momentos surreais & você disse coisas tão profundas sobre uma imagem não menos surreal & assim, enquanto eu fosse descrevendo ele viveria exatamente o que viveu no meu sonho_ se isto fosse possível eu acreditaria no poder das palavras. Se isso fosse possível para qualquer instante da Vida eu acreditaria no poder das palavras. Mas, elas apenas aproximam o que vivemos em nosso mundo particular ao mundo particular de outra pessoa, elas aproximam pela razão, já que toda linguagem se move através de uma certa lógica, e ao mesmo tempo no diz em silêncio: vês? quanto mais tentas descrever o que viveste mais distante vais ficando, quanto mais descreves o que viveste a alguém que não viveu, mais longe o “joga” da Vida que tentas manifestar pelas palavras, vais ficando... vais ficando como um barco em alto mar que se distancia da terra firme. Navegar é preciso, disse Fernando Pessoa, porque ele sabia que esse navegar que nos leva para tão longe é tudo que podemos ter, é o melhor que podemos viver neste mundo, é o único caminho possível? Não sei, mas é o caminho que todos nós usamos para aproximar nosso mundo do mundo das pessoas que amamos. As palavras remetem, àquele que escuta, somente uma parte do seu mundo vivido. E eis a confusão de uma troca de “vivências” que deveria ser puramente aquilo que se troca pelas palavras produzida pela tentativa de levar ao outro algo que não viveu.
Tempo 5_ Os filósofos têm explicações para tudo. Sugestão: abrir aleatoriamente é brincar de destinos & profecias. Abro Merleau-Ponty: “não podes fingir desenrolar o mesmo fio que o espírito teria enrolado, ser o espírito que retorna a si em mim. à margem: idéia de retorno, idéia de reflexão recuando sobre as pegadas.” Merleau-Ponty & As Pegadas da Reflexão.
Tempo 6_ Abro Bergson: “a bem dizer, não é nem um enrolar-se nem um desenrolar-se, pois estas duas imagens evocam a representação de linhas e superfícies cujas partes são homogêneas entre si e superponíveis umas às outras. Não é a ação de mover que é divisível, mas a linha imóvel que deixa atrás de si como um traço no espaço.” Bergon & O Novelo de lã.
Tempo 7_ O felino não brincava com um novelo de lã tampouco deu a impressão de que fosse recuar sobre suas pegadas. Talvez Bergson compreendesse melhor o sonho, não era um andar e não era um ficar imóvel, não era para entender as pegadas invisíveis do felino como possuidoras de divisão entre o seu movimento suave e a sua instantânea fixidez, simplesmente tudo não fora mais que um traço no espaço de um sonho. “É se se quiser, o desenrolar de um novelo, pois não há ser vivo que não se sinta chegar pouco a pouco ao fim de sua meada; e viver consiste em envelhecer. Mas, é da mesma maneira, um enrolar-se contínuo, como o de um fio num novelo, pois nosso passado nos segue, cresce sem cessar a cada presente que incorpora em seu caminho.”
Tempo 8_ O sentido do sonho: o felino interrompera o pressuposto bergsoniano de continuidade do movimento, a fixidez do felino fora uma prova de que para alguns instantes da existência a continuidade da vida é dada pela sua outra face: a fixidez existe. Assim, a imagem do gato brincou com o meu espanto ao ficar imóvel num espaço que não fora traçado para seu mundo. Talvez o sentido do sonho seja apenas este: uma imagem sem pertença, uma imagem do impossível, uma imagem de uma vida sem devir, uma imagem que não era mediação sequer movimento. A imagem jamais poderia pertencer ao felino. Fora apenas um sonho lúdico-infantil-surreal para dizer que a não-continuidade também existe. Só.
sANdrA & Crátilo em Sonhos Com Pegadas No Ar, Pegadas no Pensamento, Pegadas No Imaginário.