Resenha sobre Hegel_ Gusdorf
A Filosofia em Hegel
Hegel, um filósofo idealista objetivo, pertence à Nova Metafísica, juntamente com Kant — com o qual a Antiga Metafísica é finalmente esquecida e desacreditada — Fichte e Shelling iniciam o que se denominou de ‘metafísica crítica’ ou idealista. A entidade transcendente não é mais vista ontologicamente como era para os antigos gregos e medievais, ao contrário, passa a ser a consciência que o homem tem do mundo e de si próprio. A realidade ontológica passa a ser compreendida unicamente pelo pensamento do homem; a subjetividade assume o lugar até então ocupado por um ser transcendente, o realismo é substituído pelo idealismo, seja ele objetivo ou subjetivo e levado aos extremos como o foi por Shelling.
Segundo Gusdorf, Hegel vê a filosofia como ‘a verdade que não se fragmenta, nem se situa em perspectiva, mas permanece alheia às vicissitudes da versatilidade humana. Impõe-se por seu volume, à maneira da montanha. Donde, não devem iludir-nos nem as necessidades da exposição, nem aos vagares da progressão demonstrativa. Da primeira à última palavra, se algum avanço se nota é só por condescendência com a fraqueza do espírito individual, pois que, de fato, a verdade implica-se a si mesma. ‘A filosofia forma um círculo,’ diz expressamente Hegel, conferindo assim plena validade etimológica ao seu programa de Enciclopédia das Ciências Filosóficas. ‘Aquilo por onde a filosofia começa é imediatamente relativo, pois que, num outro ponto terminal, deve aparecer como resultado. A filosofia é uma teoria que não está suspensa no ar; não começa imediatamente, mas é uma curva que se fecha.’[1]
Assim, diz-se que, para Hegel tudo tende a um fim, ao Espírito Absoluto, à plenificação do homem e do mundo dentro de um processo de circularidade mediado pela tríade dialética. Pergunta-se: como algo que é circular ( e que nunca será de outra forma) poderia entrar num processo de desenvolvimento? E depois, como saber se a dialética, sendo o movimento da realidade através do pensamento, estaria inserida dentro dessa ‘circularidade lógica’, de uma forma não-equivocada, no que se refere à plenificação? Como todos os homens, ou o ser de cada homem, poderiam ter certeza de que não estão se desviando do caminho tido por Hegel como o da verdade ontológica? Consideremos o seguinte: se todos os homens, independentemente de quererem ou não ir em direção a esta plenificação — onde Hegel coloca como sendo o ‘escopo’ de toda a existência — se todos caminhassem sem estarem equivocados, porque quer queiram quer não, a história os conduz para tal dialética do desenvolvimento, que tipo de plenificação seria esta diante do que temos? Onde está a plenificação do homem num mundo em que a miséria e o sofrimento humanos aumentam cada vez mais? Esse desenvolvimento não deveria levar o ‘ser’ que habita este mundo a se tornar melhor? O que se vê é um mundo em que a autoconsciência não parece estar indo em direção a qualquer plenificação que seja. Ao passo que se o homem tem direito a estar equivocado em tal processo dado somente pela reflexão, então teríamos como explicar o mundo em que vivemos. Mas isto também, não é possível , visto que o homem é ‘arrastado’ pela história, que o processo é teleológico e, assim, não tem liberdade para equivocar-se, está incondicionalmente condicionado a tal processo. Do contrário, como poderia um Espírito que é Absoluto permitir um mundo cheio de ‘sofrimentos e horrores’? Em que altura de tal projeto anda tal evolução? ‘Venho manifestando já por vezes minha opinião de que cada povo e até mesmo cada indivíduo, em vez de sonhar com ‘falsas responsabilidades’, devia refletir a fundo sobre a parte de culpa que lhe cabe da guerra e de outras misérias humanas, quer por sua atuação, por sua omissão ou por seus maus costumes; este seria o único meio de se evitar a próxima guerra (...) poder-se-ia até pensar que tudo foi melhor assim para o mundo, embora alguns milhões de mortos estejam embaixo da terra. (...) semeia-se o descontentamento e a maldade, e a meta final de tudo isto é outra vez a guerra (...) Tudo isto é claro e simples, qualquer pessoa pode compreendê-lo; com uma hora de meditação todos poderiam chegar ao mesmo resultado. Mas ninguém quer agir assim, ninguém quer evitar a próxima guerra, quer livrar-se ou livrar a seus filhos da morte aos milhares, nem quer parar para um instante e pensar voluntariamente. Uma hora de reflexão, um momento de entrar em si mesmo e perguntar a parte de culpa que lhe cabe nesta desordem e na maldade que impera no mundo — mas ninguém quer fazê-lo. E assim tudo continua (...)’[2] Paradoxalmente, poderia-se perguntar: o que faz aqui uma citação de uma obra de ficção, num texto que deveria limitar-se à terminologia filosófica? Mas quanto de ficção não há nas páginas de filosofia e quanto de uma verdadeira filosofia não há nas páginas de ficção? As palavras de Hesse, no entanto, tem um propósito: o autor não fala de um conto de fadas, fala sobre o mundo como tem sido a milhares de anos, então: onde está a plenificação de tal mundo? Se o homem é ‘arrastado’ pela história, independente de sua vontade, que espécie de história é essa que não torna os homens menos propensos à guerra e à maldade? A plenificação entrou num ‘circulo vicioso’ do qual não consegue se libertar porque não consegue ‘arrastar’ tantos ao mesmo tempo? Onde está o Espírito Absoluto diante do que temos? Diante do homem que não muda? De um mundo que é sempre tão igual em sua miséria humana? Portanto, penso que o Espírito Absoluto abandonou seu laboratório e deixou-o a mercê de um ‘deus’ Aprendiz-físico, que não sabe o que fazer com o que tem em mãos; ou que os homens não são arrastados pela história e poucos tomam o caminho de tal plenificação; ou ainda que estão equivocados, estão sendo arrastados, mas estão totalmente equivocados e então o que temos é uma profunda ilusão de que um dia haverá mais homens tomando o caminho certo e talvez se descubra que o círculo lógico não seja tão lógico assim, que a história não seja tão ‘condutora’ das ações humanas.
[1] GUSDORF, Georges. Tratado de metafísica. SãoPaulo:Companhia Editora Nacional, 1960. p. 27
[2] HESSE, Hermann. O lobo da estepe. 12. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977. p. 107.
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