sábado, 24 de setembro de 2005

O 'movimento' da vida em Bergson e o 'movimento' da narrativa em Proust_ uma aproximação litero-filosófica

Este texto foi escrito como uma experiência no sentido de se procurar abordar o movimento do pensamento do narrador proustiano a partir do pensamento filosófico de Henry Bergson, estabelecendo como pressuposto a possibilidade de existir uma espécie de “universalidade” no caminho tomado que se particulariza a partir de recorrências do próprio pensamento exteriorizado na narrativa ficcional.

"Eu compreendi o significado de morte, do amor e da vocação, das alegrias do espírito e da utilidade da dor [1]". Marcel Proust

Na filosofia de Bergson, em especial, no seu texto Introdução à Metafísica, podemos vislumbrar o que o filósofo concebia como sendo filosofia: a própria vida conceituada como absoluto, a qual "não se prende a nenhum ponto de vista e não se apóia a nenhum símbolo" [[2]]. Há no seu pensamento filosófico um movimento [a intuição][3] pressuposta como universalidade, pois todos os homens a possuem, e, dessa forma, uma particularização, esta, dada pelo absoluto de cada homem, a partir de suas intuições e posteriores análises, conceitos, representações. A existência definida como absoluto através da intuição, movimento interior de todo homem, movimento particularizado, não permite, no entanto, o caminho inverso, isto é, sair dos conceitos de volta para uma intuição já dada. Através dessa breve síntese de um dos pontos principais da filosofia bergsoniana, observamos a seguinte recorrência: a intuição de algo num dado momento presente [a intuição é sempre dada no agora do existir] é a vida no seu fluir contínuo o qual remete para o movimento de ser impossível experimentar a mesma coisa, pois “uma consciência que possuísse dois momentos idênticos seria uma consciência sem memória.”[4] Essas idéias do filósofo francês [[5]] se aproximam muito de perto com a recorrência da produção literária de Proust, na sua obra À la recherche du temp perdu [[6]], pois o narrador proustiano tem seu pensamento voltado constantemente para o passado. Torna-se possível estabelecer um paralelo entre Bergson e Proust em função das lembranças [memória-recordação[7] em Bergson], assim estipulamos aqui partir do filosófico para analisar o literário. Para o literato, Proust, o absoluto poderia ser interpretado como sendo o próprio ato de recordar enquanto o relativo, este aponta para o fato de as lembranças serem recordadas por partes remetendo para a fragmentação ou uma particularização das divagações das personagens principais em torno de algo vivido no passado. Este algo, irrecuperável se pensarmos no absoluto de Bergson_ a própria vida_ é indiretamente o caminho ficcional percorrido pelo narrador proustiano, pois nem o homem [qualquer homem] nem o leitor, poderiam vir a lembrar de tudo o que viveram ou de lembrar de forma absoluta, cronologica e linearmente, não há tal linearidade no recordado e nunca se dá como algo completo dentro do fluir da existência, ainda que isso se dê parte por parte, fragmento por fragmento. Por outro lado, se pensarmos sob o ponto de vista do leitor, Proust, talvez, desejasse despertar nele a idéia de que sua existência, embora absoluta no presente, é igualmente fragmentada em relação ao passado, irrecuperável em termos do absoluto bergsoniano, por isso “perdido”. O relativo em Bergson é uma das formas pelas quais podemos conhecer algo e onde, segundo ele, colocamo-nos ora de dentro e ora de fora do próprio objeto. Se derivarmos essa afirmação para a recordação veremos no passado via representação um abstrair-se do lembrado, há um distanciar-se exigido pelo ato de abstrair que nos coloca de fora do próprio ‘objeto’ e manifesta a impossibilidade de viver um momento duas vezes. A representação dada por conceitos, embora dada no movimento do próprio pensar, quer atingir um objeto [determinado momento vivido] como se fosse um momento presente recuperável, isso é totalmente impossível, talvez a única evidência que possamos ter da vida seja esta: o momento presente não se repete e a intuição deste também não. Através das lembranças o momento é revivido, re-apresentado "como se fosse" aquele que se deseja resgatar, mas é preciso destacar: as representações remetem ao que se assemelha ao já visto, tocado, sentido, percebido e até ao pensado, servindo para reter nosso passado em sua forma fragmentária, pensado por partes, lembrado não-linearmente, acessado com acréscimos. O relativo, portanto, personifica a fragmentação da existência enquanto esta é o absoluto, pois o uso de conceitos e imagens, embora representadas [pois representar já seria de alguma maneira mover o pensamento para o passado, fragmentá-lo] não traria de volta a intuição do viver. Lembrar torna-se uma espécie de, invertendo as palavras de Bergson, renunciar ao original desejado como repetição na existência para ficar com a tradução, considerando a não-possibilidade de vivê-lo [o original bergsoniano definido como os instantes de vida] uma segunda vez porque elas jamais retornariam como sendo o original dado em tal instante; ou ainda uma outra analogia: o homem está condenado a recuperar o irrecuperável porque nada pode fazer além disso, nada pode ser feito de melhor além de invocar a forma do relativo para si mesmo. Esta, talvez, torne-se outra recorrência proustiana. Isto poderia ser visto como um renegar da realidade vivida pelas personagens funcionando como desculpa para jogarem suas existências em lembranças. Como se houvesse uma segunda ficção em Proust, aquela em que a própria personagem perdida em divagações faz ficção de suas memórias. A compreensão do ir-e-vir marcado, sobretudo, por um deslocamento longo e constante dentro da obra, torna a leitura difícil se o leitor a pretende como linear, as lembranças alternadas com a realidade não permitem captar a história com linearidade. Quem sabe, Proust quisesse, enfim, dizer ao seu leitor que como toda essa fragmentação deixa as personagens imersas num movimento que não é aquele pelo qual tomamos a própria vida, ainda assim, no entanto, é a própria vida descrita em tal movimento e particularizada para cada um, embora, num certo sentido, seja da mesma forma para todos. Exatamente por não se fixar no presente o narrador proustiano chega a confundir seu leitor, ora está no tempo presente das personagens [o absoluto] ora está no relativo da memória-recordação, característica principal da obra de Proust. O “agora” da existência humana na ficção proustiana, ao contrário de ser a peça principal do jogo, converte-se no lugar de que ele dispõe para “ir”, em busca do já vivido, e “trazer" de volta sob forma de um pensamento que analisa, divaga, conceitua, conclui. O narrador proustiano passará a angústia de que não se pode “agarrar” o fato descrito [já foi presente] e então numa finitude tornada passado, o irrecuperável em existência [determinado fato “narrado” não será jamais o fato vivido] acaba por remeter à busca de um tempo perdido. Ora, toda a existência transformada em finitude quando lembrada converte-se na busca de tudo aquilo que não pode retornar: as sensações, percepções, o olhar sobre as coisas e até mesmo o pensado do instante presente torna-se irrecuperável, pois “(...) ao longo de uma série de reflexões pesadas sobre a incapacidade de nosso intelecto salvar o passado enquanto passado, ao querer reapresentá-lo no presente, Proust escreve: ‘é assim com o nosso passado, trabalho perdido procurar evocá-lo, todos os esforços da nossa inteligência permanecem inúteis. Está ele oculto, fora do seu domínio e do seu alcance, nalgum objeto material (na sensação que nos daria esse objeto material) que nós nem suspeitamos’. [[8]] O narrador proustiano ao querer falar sobre um episódio de sua infância fica sem o absoluto das sensações que fazem parte agora do passado; “Proust fazia a experiência que não dá para querer apropriar-se deste evento por meio do intelecto e uma vontade forte.” Nada pode ser recuperado na sua forma empírica nem mesmo através da linguagem no movimento do pensamento, lembrar não é viver uma segunda vez a mesma coisa em seu sentido original, em como se deu, de outra forma: o reaparecimento de algo estando vinculado com a memória, que, por sua vez, não é aquela do exato instante ocorrido, transforma as lembranças em um re-aparecimento alterado e, portanto, irrecuperável. Mas o que faz Proust? Embora afirme a “incapacidade de nosso intelecto salvar o passado enquanto passado” [[9]] ele não desvia seu olhar da existência considerada perdida, um olhar sempre voltado para trás fazendo-o perseguir em suas personagens memórias e, contudo, sem considerar possível reapresentá-las no presente. Uma recorrência do movimento do pensamento? Poderíamos pensar que sim, mas o que então se busca neste tempo já considerado perdido quando sabemos que se encontra perdido? A ficção associa-se às sensações e percepções do momento recordado alterando-as no presente, embora se refiram ao passado: como se fosse passado e como se fosse presente. Mas o narrador nos conduz habilmente para este mundo de lembranças, há uma perseguição por algo não sustentado no presente, o passado rememorado fornece ao “agora” um sentido. O ficcional da obra proustiana ultrapassa a mera existência de um drama e de ações das personagens para adquirir na linguagem o instrumento para dizer o impossível, buscar o já perdido onde a existência “presente” das personagens funciona como pano de frente para o passado. Schneider, pergunta: “Qual é a parte de nós que nos é própria e não traço do outro em nós? Escrever é abandonar-se à fascinação da ausência do tempo. A própria memória é uma forma de imaginação, uma ficção que reescreve os vestígios deixados, enquanto a imaginação, por mais criativa que seja, procede da lembrança daquilo que não se produziu.” [[10]] Isto é, a memória implica não somente na “ausência” desse mesmo eu [não é mais um existir presente, no agora] que intuiu tal momento, mas somado ao eu que pensa sobre o acontecido [não mais aquele de um dado instante] e, além disso, somado às lembranças contidas na memória em relação aquilo que não se produziu, em outras palavras, o não vivido converte-se em algo “produzido” quando “lembrado” na própria ação do imaginário, é a linguagem da memória a se misturar a um tempo fragmentário, jamais em um estado “puro” descritivo. Lembrar não seria então reescrever num tempo já tardio? Não é possível alterar nada nesse tempo [ausente ou não] além da linguagem, além da ficção, além da narrativa, apenas é o eu a alterar a realidade já vivida através das lembranças contidas na memória e no imaginário. Há o pressuposto da existência de elementos produzidos por esta “ausência”, relembrar pode significar: aumentar, exagerar, divagar, exaltar, alucinar, fantasiar imagens de sensações e pensamentos as quais não se deram verdadeiramente. A área-limítrofe se perde entre o tempo perdido nas lembranças da memória e o tempo presente junto com tudo o que o eu se tornou e viveu até então, a área-limítrofe transforma-se em ficção. Proust joga com a linguagem na memória e no passado, o leitor se seduz pela linguagem presente enquanto ela mesma remete a uma busca incessante do que já foi_ e, por isso, perdido, a busca vem a ser um resgate da existência que não mais se pode resgatar e, no entanto, buscada com um novo sentido. Haverá sempre uma lembrança para dar ‘impulso’ ao jogo proustiano através da atitude de cercar-se de um caminho que leva sempre a um outro caminho, mas sem poder, contudo transformá-lo na própria vida. Em sua forma mais profunda da existência humana Proust, com certeza, substituiu as descrições exageradas dos realistas da literatura de ficção para o mesmo ponto de vista do qual Bergson fala para explicar o absoluto. Fornecemos um exemplo para esclarecer o que foi dito até agora através de uma afirmação de Bergson transposta para a narrativa proustiana: "seja ainda uma personagem de romance cujas aventuras me são contadas. O romancista poderá multiplicar os traços de caráter, fazer falar e agir seu herói tanto quanto queira: tudo isso não valerá o sentimento simples e indivisível que eu experimentaria se coincidisse um instante com a própria personagem. Então, as palavras, os gestos e as ações me pareceriam correr naturalmente, como da fonte. Já não seriam acidentes acrescentando-se à idéia que me fazia da personagem, enriquecendo-a sempre mais e mais sem nunca completá-la. A personagem me seria dada de uma vez, integralmente, e os mil acidentes que a manifestam, em lugar de se acrescentarem à idéia e enriquecê-la, me pareceriam, ao contrário, então, destacaram-se dela, sem, entretanto, esgotá-la ou empobrecer sua essência. Descrição, história e análise me deixam, pois, no relativo. Somente a coincidência com a própria pessoa me daria o absoluto.”[11] No caso de Bergson, é possível inferir: a personagem somos nós mesmos no ato de recordar e de nos representarmos em um mundo irrecuperável em sua originalidade absoluta; já em Proust, a própria personagem diz ao leitor: o movimento do meu pensamento em recordações é uma ficção, mas remete para o movimento que, você, leitor também faz de sua própria existência sem que o perceba. Em Bergson isso é dito claramente, em Proust, este jogo se mistura com a ficção, mas coincide com o fluir da vida. E se descrição [das personagens] história [fictícia narrada] e análise [das lembranças] não podem dar o absoluto na vida, Proust mostra que na vida real também não. O autor insiste em realizar sua literatura recorrendo a "mil acidentes que manifestam" algo da natureza humana: a lembrança e o ato de lembrar. Com isso poderíamos pressupor a impossibilidade da presença do absoluto [a vida em seu fluir contínuo] e da memória-recordação, na ficção e na realidade [no sentido dos dois momentos idênticos na consciência a que se refere Bergson]. Quem sabe, porque a literatura tente dizer que a existência não pode ser vivida como num romance com toda a linearidade em que este é construído, não é possível alguém lembrar tudo que viveu desde o instante do nascimento, ou desde o instante que começasse a pensar sobre si mesmo, até o momento em que resolvesse realizar isto. Proust, ao contrário dos escritores precedentes, mostra esse fato na estrutura de sua obra, não é possível iludir tanto assim o leitor, é preciso que ele perceba que a vida embora possa ser narrada não é uma ficção que se dá exclusivamente na ficção, pois até mesmo aquele homem que nunca escreveu absolutamente nada fará ficção de si mesmo quando recordar seu passado, substituirá palavras, o lugar em que a cena se passou será acessado já de outra forma, o esquecimento de detalhes fará com que se recrie outras imagens, a percepção do acontecido já terá sido alterada por novas percepções fornecidas pelos momentos vividos entre o momento recordado e o momento lembrado, já que aí se inseriram o absoluto e o relativo, a própria linguagem já terá uma outra significação no imaginário tornando o original distorcido, reinterpretado, representado, recuperado num mundo que não aquele do original com "mil acidentes que o manifestam"_ no agora. Bergson explica que o absoluto "visto de dentro é coisa simples, mas considerado de fora, isto é, relativamente à outra coisa, torna-se, em relação aos signos que o exprimem, a peça de ouro cuja moeda jamais chegará a equivaler."[[12]] Assim, se pensarmos no movimento de lembrar “como se” fosse a "tradução de um poema", a memória-recordação multiplicaria sem cessar os símbolos para perfazer a "tradução" sempre imperfeita [já que a perfeição se dá somente no absoluto] e desejada como retorno no empírico ou como simples explicação dada a nós mesmos como forma de analisar o passado, para isso é preciso remeter o pensamento para trás o que pressupõe sempre algo "guardado". Se em Bergson "há uma realidade, ao menos que todos apreendemos por dentro, por intuição e não por simples análise" [[13]], se "é nossa própria pessoa em seu fluir através do tempo, é nosso eu que dura" [[14]], no narrador proustiano há uma realidade apreendida de dentro do pensamento das personagens como se fosse interior, como se fosse o fluir através do tempo, mas apreendida pelo leitor e, portanto, de fora. Vejamos uma cena da obra, retirada de Samuel Beckett, a narrativa justifica por si só a extensão da citação, um pouco longa: "O narrador, acompanhado de sua avó, chega pela primeira vez a Balbec-Plage, uma estação de Veraneio na Normandia. Ficarão hospedados no Grande Hotel. Ele entra em seu quarto, febril e exausto depois da viagem. Mas dormir neste inferno de objetos desconhecidos está completamente fora de questão. Todas as suas faculdades estão de alerta, na defensiva, vigilantes e tensas e tão dolorosamente incapazes de relaxamento quanto o corpo torturado de La Balue em sua gaiola, onde não podia sentar-se ou pôr-se em pé. Não há espaço para seu corpo neste apartamento vasto e hediondo, porque sua atenção o mantém povoado por gigantesca mobília, uma tempestade de sons e uma agonia de cores. O Hábito não teve tempo ainda de silenciar as explosões do relógio, reduzir a hostilidade das cortinas roxas e rebaixar a abóbada inacessível deste belveder. Sozinho neste quarto que ainda não é um quarto, mas uma caverna de feras selvagens, de estranhas e implacáveis criaturas cuja privacidade ele acaba de perturbar, atacado por todos os lados, ele deseja morrer. Sua avó aparece para confortá-lo, interrompe seu movimento quando ele se abaixa para desabotoar as botas, insiste em ajudá-lo a despir-se, o põe na cama e antes de partir o faz prometer que baterá na parede divisória que separa o seu quarto do dela caso necessite de alguma coisa durante a noite. Mas naquela noite e por muitas noites ele sofre. Este sofrimento é interpretado por ele como a humilde, orgânica e obscura recusa, por parte daqueles elementos que até então representavam o que de melhor havia na sua vida, em aceitar a possibilidade de uma fórmula na qual não terão qualquer participação. Esta relutância em morrer, esta longa, diária e desesperada resistência perante a esfoliação perpétua de sua personalidade, explica também seu horror à idéia de jamais viver sem Gilberte Swann, de jamais perder seus pais, à idéia da própria morte.”[[15]] Beckett prossegue dizendo que o horror vai mais longe do que a idéia da perda concreta das pessoas amadas pela personagem: “quando ele pensa que à dor da separação sucederá a indiferença, que a privação deixará de ser uma privação quando a alquimia do Hábito tiver transformado o indivíduo capaz de sofrimento em um estranho, quando não apenas os objetos de sua afeição tiverem desaparecido, mas também aquela própria afeição”[[16]], o narrador manifesta não só uma antecipação de futuro, mas um sofrimento por perdas que nem mesmo o "hábito" de lembrar poderá manter presentes para sempre o objeto que, naquele instante, significara o absoluto. O desespero da personagem é o luto por algo que ainda não aconteceu, por dois algos, um real e outro mantido em sua interioridade, em sua forma de sentir, em seu afeto. Perderá também aquilo que o constitui no agora, que o faz ser quem é, perde a si próprio em recortes fragmentados de um devir que pressupõe como linear e verdadeiro. Bergson, a respeito do "olhar interior da consciência", diz que seus elementos [percepções, lembranças, interpretações, semelhanças, tendências, hábitos motores, etc.] são “orientados de dentro para fora, constituem, reunidos, a superfície de uma esfera que tende a expandir-se e perder-se no mundo exterior, se procuro no fundo de mim mesmo o que é mais uniforme, mais constante, mais durável, eu mesmo encontro algo totalmente diferente.”[[17]]. A dor do narrador proustiano diante das condições de seu mundo particular é momentaneamente orientada de dentro para fora, mas também de fora para dentro porque o exterior em que se perde e se expande, a antecipação de um futuro previsto, o faz encontrar-se totalmente diferente, essa ambigüidade diante da realidade irreal [o fato antecipado ainda não ocorreu além do pensamento] o faz oscilar entre quem é e aquele que se tornará quando nem mesmo o afeto será recordado como algo dado na existência. Encontrar-se diferente, de certa forma, é como perder-se para algo do seu mundo privado. O hábito em Proust sai da simples banalização do cotidiano para evocar o "absurdo do sonho de um Paraíso com retenção da personalidade, já que a vida é uma sucessão de Paraísos sucessivamente negados, onde o único Paraíso verdadeiro é o Paraíso que perdemos e que a morte curará muitos de seu desejo de imortalidade."[[18]] Essa derivação do hábito dos afetos para um "hábito interrompido" acaba por reduzir a própria recordação que mais tarde, no futuro de sua suposta realidade, será fragmentada em recortes ‘sem sofrimento’. Quando Beckett diz que “o homem de boa memória nunca se lembra de nada, porque nunca se esquece de nada, sua memória é uniforme, uma criatura de rotina"[[19]], infere-se em Proust a necessidade de um esquecimento que também será fragmentário, mas é exatamente esse esquecimento ou a morte de "recortes sucessivos" que fará da personagem encontrar-se diferente_ sua salvação diante da perda do paraíso. “Não há grande diferença”, diz Proust, “entre a memória de um sonho e a memória da realidade."[[20]] e ainda: “a memória voluntária insiste na mais necessária, salutar e monótona forma de plágio_ o plágio de si mesmo.”[[21]] A morte do hábito e de tudo que a ele está condicionado nos tira do plágio e nos joga para outros Paraísos, criados, encontrados, vividos, que vêm a substituir os antigos para novamente serem negados ou destruídos entre recordações e esquecimentos, entre ser sempre o mesmo e ser já outro. “É, por sob estes cristais bem recortados e este congelamento superficial, uma continuidade que se escoa de maneira diferente de tudo o que já vi escoar-se (...) sucessão de estados em que cada um anuncia aquele que o segue e contém o que o precedeu (...) só constituem estados múltiplos quando, uma vez tendo-os ultrapassado, eu me volto para observar-lhes os traços"[[22]] quando essa observação atinge nossa consciência, já não somos parte do hábito, do plágio de si mesmo, de alguns paraísos criados, estes estados múltiplos mostrados via memória, onde as leis da lógica não possuem um lugar privilegiado, fazem o próprio autor declarar: "nós veneramos a regra que violamos. Um jogo de oposições destacadas está na base de um movimento alternado de fidelidade [o absoluto da vida] e de revolta [a irrecuperabilidade do absoluto já vivido, que é a essência do homem]. Fora desse jogo, sufocamos na lógica das leis."[[23]]. A recorrência da produção literária de Proust através de recordações-passadas exige dois tempos perdidos, além do Paraíso: o evocar do já vivido e contudo irrecuperável em sua forma original e absoluta e o tempo perdido do presente em que é preciso abstrair-se do viver original para perder-se em imagens recordadas, já que seria impossível que alguém conseguisse viver intensamente no presente enquanto se deixasse absorver por um perder-se em recordações sobre si mesmo. Baitalle fala sobre Proust acentuando a sua busca pela justiça, verdade e paixão: "algo existe em nós de apaixonado, de generoso e de sagrado que excede as representações da inteligência: é por esse excesso que somos humanos.” [[24]] E acrescenta as palavras de Proust: "a verdade se apresentaria a quem não a amasse até o delírio?" Mas o que era a verdade para Proust? Talvez não uma, mas múltiplas, uma delas provavelmente em hesitar entre a vida presente das personagens e seus extremos: o futuro e principalmente o passado onde tudo flui junto ao presente, e se os fragmentos se encontram nos extremos: a danação e salvação_ o Tempo_ apenas mostra que "não há como fugir das horas e dos dias, nem de amanhã nem de ontem, não há como fugir de ontem porque ontem nos deformou ou foi por nós deformado (...) assim como foi, esse dia é assimilado ao único mundo que tem realidade e significado, o mundo de nossa consciência latente.'[[25]]. Tudo isso implica em recordações, hábitos, afetos, dores, transformações e, naquilo que era o primordial no mundo proustiano _ a intuição_ "porque o instinto, quando não corrompido pelo hábito, é também um reflexo, ele é 'positivo' na medida em que afirma o valor da intuição"[[26]]. Toda sua narrativa é uma lamento pelo tempo perdido “decorando nossas vidas como uma vegetação parasitária e humana”[[27]] que nos condena à busca do irrecuperável, daí seu pessimismo diante do movimento relativo que cada um faz de seu absoluto. Beckett destaca que “seja qual for o objeto, nosso desejo de posse é, por definição, insaciável. Na melhor das hipóteses, tudo que se der no Tempo (todo produto do Tempo) seja na Arte ou na Vida, só poderá ser possuído sucessivamente, por uma série de anexações parciais _ e nunca integralmente, de uma só vez”. [[28]] Seria injusto afirmar que esse movimento proustiano no ato da escrita fosse simplesmente um estar avessos às mesmices de seu próprio pensar, um não cansar-se de buscar o que ali não está, de desejar estar onde não mais se encontra, de sentir o já sentido e o não-sentido, de pensar o ainda não pensado, de proclamar ao mundo aquilo que ainda não foi dito, seria sensato dizermos, existe uma nostalgia: a de que a vida passa e passa junto com a impossibilidade de ser recuperada, contudo vida tornada obra de arte, pois “repercorrer de ponta a ponta, de quarto em quarto, os porões, as escadas, os redutos, os celeiros, aqueles onde você morou e aqueles que moram em você, esses quartos interiores que uma criança imaginava quando, interminavelmente, contava para si mesma a história de sua louca família (...)” [[29]] pode significar além de sedução literária uma espécie de “universalidade” quanto à forma de pensar a existência. Para isso, a linguagem se torna o caminho para aquilo que se deseja “ver”, como uma espécie de movimento do pensamento, universalizado na obra, mas particularizado, isto é, o próprio pensar acaba por se universalizar no pensamento ao mesmo tempo em que o particulariza através do caminho “escolhido”. Para o proustiano, como uma direção “viciada”, onde em sua recorrência repassa o passado na memória e o altera. Este movimento, na verdade, particular e próprio, e que se utiliza da linguagem para tanto, poderia ser chamado de universal, mesmo de forma metafórica, na medida em que se pressupõe um tomar o seu mundo privado através do próprio ponto de vista como se fosse o mundo inteiro. Tal universalidade do pensamento se imaginada como sendo a existência mesma faz sentido se percebermos o “movimento” como se fosse uma absorção de recorrências ao passado e recorrências a possibilidades futuras, dada pela ficção proustiana, mas, sem dúvida, vivida por todos. Abrange a “maneira” de existir: um “caminho” do pensamento aprisionado em repetições, considerando que “o espaço reatravessado torna-se tempo reconhecido.”[[30]] Tal espaço reatravessado é dado pela linguagem e pelo movimento do pensamento e a possibilidade de tornar-se reconhecido porque encontra na própria linguagem o ato de recordar e, assim, re-presentar [apresentar novamente] algo vivido como um “reconhecimento” de si mesmo, ainda que em todo esse processo não possamos ignorar que é: à la recherche du temps perdu_ para alguns_ e `a la recherche du temps futur_ para outros e, enfim, para alguns, o absoluto bergsoniano.

[1] BECKETT, Samuel. Proust. Trad. Arthur Rosenblat Nestrovski. Porto Alegre: L&PM, 1986. pag 63. [2] BERGSON, Henri-Louis. Os pensadores: vida e obra: Introdução à metafísica 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984. p. 9. [3] Todas as observações feitas entre colchetes são de nossa autoria não se referindo às citações utilizadas dentro do texto. [4] Cf. Bergson. Introdução à metafísica. p. 16. [5] É interessante observar que tanto Bergson como Proust, além de franceses, foram contemporâneos, o primeiro nasceu em Paris em 1859 e morreu em 1941, o segundo nasceu em 1871 também em Paris, e morreu em 1922. [6] A obra completa de Marcel Proust, À la recherche du temp perdu, consta de 7 volumes. [7] Id. Cf. Bergson. Vida e obra. XI. [8] FLICKINGER, Hans-George. Revista Veritas: Subjetividade e tempo: considerações em torno da interpretação da obra de Marcel Proust por Samuel Beckett. Vol. 1, n. 1. Porto Alegre: EDIPUC, 1955. [9] SCHNEIDER, Michel. Ladrões de palavras: ensaio sobre o plágio, a psicanálise e o pensamento. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990. p. 13. [10] Id. Cf. Schneider. Ladrões de palavras, 1990. p. 19 [11] Id. Cf. Bergson. Introdução à metafísica. p. 15. [12] Id. Cf. Introdução à metafísica. p. 09. [13] Id. Cf. Introdução à metafísica. [14] Id. Cf. Introdução à metafísica. [15] Cf. Beckett. p. 18-19. [16] Id. p. 19-20. [17] Cf. Bergson. Introdução à metafísica. p. 15. [18] Cf. Beckett. p. 20. [19] Id. Beckett. p 23. [20] Id. Beckett. p. 25. [21] Id. Beckett. p. 25. [22] Cf. Bergson. Introdução à metafísica. p. 15-16. [23] BATAILLE, Georges. A literatura e o mal. Trad. Suely Bastos. Porto Alegre: L&PM, 1989. p. 121. [24] Id. Cf. A literatura e o mal. p. 127. [25] Id. p. 128 [26] Cf. Beckett. [27] Id. Beckett. [28] Id. Beckett. [29] Cf. Ladrões de palavras. p. 19. [30] Id. p. 13.